15.6.10

Cornelius Cardew e a liberdade da escuta - exposição no Porto até 26 de Junho de um dos compositores mais vanguardistas e politicamente implicados do séc. XX

As obras de arte do mais alto nível não
se distinguem de outras obras pelo seu sucesso
– qualquer que seja o significado de sucesso –
mas pela natureza do seu fracasso.
Theodor W. Adorno

 
É na absoluta dispersão das suas vozes que
a comunidade se experiencia.
Jean-Luc Nancy

Cornelius Cardew e a liberdade da escuta, é  uma exposição e um programa de concertos, performances e conversas com curadoria de Dean Inkster, Jean-Jacques Palix, Lore Gablier e Pierre Bal-Blanc que está patente nas instalações da CulturGest do Porto desde 8 de Maio e  prolongando-se até 26 de Junho. Entrada gratuita

Culturgest Porto – Galeria
Edifício Caixa Geral de Depósitos

Avenida dos Aliados nº104
4000-065 Porto

Ler e Descarregar o jornal da exposição: AQUI

A exposição reconstitui o percurso do compositor inglês Cornelius Cardew (1936-1981), desde os seus estudos e a sua colaboração com o compositor alemão Karlheinz Stockhausen, até à história da Scratch Orchestra, que ele co-fundou em 1969 e à qual se manteve ligado até à sua dissolução em 1975, altura em que renegou o seu trabalho como compositor de vanguarda e passou a dedicar toda a sua energia à militância política.

Iniciada pelo Centre d’art contemporain de Brétigny na Primavera de 2009, e apresentada posteriormente na Künstlerhaus Stuttgart, a exposição reúne um conjunto de filmes (de Hanne Boenisch, Luke Fowler, Nicolas Tilly e Lore Gablier), numerosas gravações musicais e vasto material de arquivo, incluindo partituras, cartazes e fotografias. Os materiais para a exposição foram generosamente cedidos por Horace Cardew, IRCAM (Paris), The Modern Institute (Glasgow), Keith Rowe, Victor Schonfield, Stefan Szczelkun, Samon Takahashi e Ruth Hilton.

Para além da exposição, este projecto engloba ainda um intenso programa de concertos, performances e conversas, ao longo do qual vários músicos e artistas internacionais interpretam partituras de Cardew e respondem ao seu trabalho de formas muito diversas, dando conta quer da duradoura vitalidade do trabalho do compositor e do seu contributo fundamental para a história da música experimental, quer da ressonância actual da sua obra e das suas ideias nas práticas musicais e artísticas contemporâneas.

Cornelius Cardew é indiscutivelmente um dos mais importantes compositores da segunda metade do século XX. Embora não tenha tido ainda um reconhecimento público alargado – ao contrário de Karlheinz Stockhausen e de John Cage, que influenciaram decisivamente a sua obra num período inicial –, Cardew inspirou toda uma geração de compositores e músicos de vanguarda, sendo reivindicado como importante influência por nomes como Gavin Bryars, Brian Eno, Michael Nyman, Frederic Rzewski ou Christian Wolff. Por outro lado, a radicalidade da sua abordagem à composição e a sua reflexão política sobre o estatuto da produção e da recepção musicais levaram-no, no final da década de 1960, a instigar uma das mais importantes tentativas de estabelecer as reivindicações democráticas da cultura de vanguarda, a Scratch Orchestra.

Nascida a partir das aulas que Cardew leccionava, em 1968, no Morley College (um colégio de educação para adultos no sul de Londres), a Scratch Orchestra questionou radicalmente as limitações sociais da arte e da música como domínios de conhecimento e experiência especializados. Combinando músicos e não-músicos, a Scratch Orchestra subverteu não só as fronteiras e hierarquias tradicionais entre o compositor, o intérprete e o ouvinte, mas também as fronteiras que cindiam o domínio da arte em campos separados – as artes visuais e a performance eram igualmente parte da experiência colectiva e criativa que inspirou os membros da Scratch Orchestra durante os seus seis anos de existência.

Desde 2006, ano do septuagésimo aniversário do seu nascimento, o interesse por Cardew, não só como compositor, mas também como figura política, ganhou um novo ímpeto. Para além de interpretações regulares da sua obra por todo o mundo, foi publicada nesse ano uma antologia dos seus escritos, Cornelius Cardew: A Reader, seguida em 2008 pela publicação de uma extensa biografia, Cornelius Cardew: A Life Unfinished, escrita pelo pianista (e ex-membro da Scratch Orchestra) John Tilbury. Este foi igualmente o ano em que se realizou a exposição Cornelius Cardew: Play for Today, comissariada por Grant Watson no MukHA, em Antuérpia, e que seria apresentada, no final de 2009, no The Drawing Room, em Londres.
À luz deste interesse renovado pela obra e pelo percurso de Cornelius Cardew, e num momento histórico em que é demasiado fácil ter um olhar sentimental “sobre os bons velhos tempos de experimentação e acção”, como sugeriu uma recensão crítica recente dos escritos de Cardew, este projecto procura não só reconstituir a história de um dos mais influentes compositores da vanguarda da segunda metade do século XX, e do importante grupo de vanguarda que ele inspirou, mas também mostrar por que razão o exemplo de Cardew é necessário “para nos fazer sair da nossa complacência e do nosso desespero actuais”.

PROGRAMA


Sábado, 8 Maio
16h30 Cornelius Cardew, The Great Learning, Paragraph 7 (1969), dirigido por Jean-Jacques Palix (entrada gratuita)
22h00 Tania Chen, recital de piano: obras de Cornelius Cardew, John Cage, Michael Parsons e Christian Wolff


Sexta, 14 Maio mais info
22h00 Cornelius Cardew, Treatise (1963-1967), concerto de Keith Rowe com Heitor Alves, Sei Miguel e Vítor Rua


Sábado, 15 Maio mais info
16h00 Michael Parsons, Walk (1969), performance dirigida por Jean-Jacques Palix (entrada gratuita)
17h00 Carole Finer, Keith Rowe e Stefan Szczelkun (antigos membros da Scratch Orchestra), A Scratch ‘Dealer Concert’: inclui obras de Howard Skempton, Christian Wolff e Stefan Szczelkun
Concerto seguido de conversa sobre a Scratch Orchestra
19h00 Conversa com Stefan Szczelkun a partir da projecção de excertos de filmes deste artista e activista (entrada gratuita)


Sábado, 22 Maio mais info
17h00 1001 Scratch Activities, performance de Loreto Troncoso e António Júlio (entrada gratuita)
22h00 Cornelius Cardew, Treatise (1963-1967), concerto de Michel Guillet, Jean-Jacques Palix, Markus Schmickler e Samon Takahashi
Piotr Kurek, Lectures, concerto


Sexta, 28 Maio mais info
21h30
Christian Wolff, recital de piano, precedido da interpretação de Stones (1968) e Burdocks (1972), deste compositor


Sábado, 29 Maio mais info
17h00 Cornelius Cardew, The Great Learning, Paragraph 5 (1970), dirigido por Lore Gablier, Annie Vigier e Franck Apertet
22h00 Walter Cardew Group (Horace Cardew, Walter Cardew, Androniki Liokoura), concerto


Sexta, 18 Junho
22h00 Cornelius Cardew, Volo Solo (1965), concerto de Rhys Chatham
Cornelius Cardew, The Tiger’s Mind (1967), concerto de Nina Canal, Nadia Lichtig e David Watson


Sábado, 19 Junho
21h30 John Tilbury, palestra e recital de piano: obras de Cornelius Cardew


Sexta, 25 Junho
22h00 Terre Thaemlitz, Meditation on Wage Labor and the Death of the Album, recital de piano

A desgraçada profissão de economista, por James Galbraith

A desgraçada profissão de economista
por James Galbraith
retirado de: http://resistir.info/crise/galbraith_18mai10.html

Sr. Presidente, Srs. Membros do Subcomité, como antigo membro da assessoria do Congresso é um prazer submeter esta declaração à vossa consideração.



Escrevo-lhes vindo de uma profissão desgraçada. A teoria económica, como é amplamente ensinada desde a década de 1980, fracassou miseravelmente no entendimento das forças que estão por trás da crise financeira. Conceitos que incluem "expectativas racionais", "disciplina de mercado" e a "hipótese dos mercados eficientes" levaram economistas a argumentar que a especulação estabilizaria preços, que os vendedores actuariam para proteger as suas reputações, que se podia confiar no caveat emptor [1] e que portanto a fraude generalizada não podia ocorrer. Nem todos os economistas acreditaram nisto – mas a maior parte sim.

Consequentemente, o estudo da fraude financeira recebeu pouca atenção. Não existe praticamente nenhum instituto de investigação; a colaboração entre economistas e criminólogos é rara; nos principais departamentos há poucos especialistas e muito poucos estudantes. Os economistas minimizaram o papel da fraude e todas as crises que examinaram, incluindo a derrocada das Caixas Económicas (Savings & Loans), a transição russa, o colapso asiático e a bolha das dot.com. Eles continuam a minimizar até hoje. Numa conferência patrocinada pelo Levy Economics Instituto, em Nova York, a 17 de Abril, o mais perto que um antigo sub-secretário do Tesouro, Peter Fischer, chegou a esta questão foi utilizar a palavra "travessuras" (naughtiness"). Isto foi no dia em que a Securities and Exchange Comission (SEC) acusou a Goldman Sachs de fraude.


Há excepções. Um famoso artigo de 1993 intitulado "Saqueio: bancarrota para o lucro" ("Looting: Bankruptcy for Profit"), de George Akerlof e Paul Romer, baseava-se excepcionalmente na experiência de reguladores que entendiam de fraude. O criminólogo-economista William K. Black, da Universidade de Missouri-Kansas City é o nosso principal analista sistemático do relacionamento entre crime financeiro e crise financeira. Black destaca que a fraude contabilística é uma coisa segura quando você pode controlar a instituição em que entrou: "o melhor meio de roubar um banco é possuí-lo". A experiência da crise das Caixas Económicas foi de empresas capturadas com o propósito explícito de depená-las, de sangrá-las até secarem. Isto foi estabelecido em tribunal: havia mais de um milhar de condenações por crime na sequência daquela derrocada. Outras crónicas úteis da moderna fraude financeira incluem "Cova de ladrões" (Den of Thieves) , de James Stewart, sobre a era Boesky-Milken, e "Conspiração de loucos" (Conspiracy of Fools) , de Kurt Eichenwald, sobre o escândalo Enron. Mas subsiste um vasto fosso entre esta história e a análise formal.



A análise formal conta-nos que o controle de fraudes segue certos padrões. Elas crescem rapidamente, relatando alta lucratividade, certificada por firmas de contabilidade de topo. Elas pagam excessivamente bem. Ao mesmo tempo, elas reduzem padrões radicalmente, construindo novos negócios em mercados anteriormente considerados demasiado arriscados para negócios honestos. No sector financeiro, isto assume a forma de descontraídas – não, estripadas – subscrições, combinadas com a capacidade de passar o último tostão para o louco maior. Na Califórnia, na década de 1980, Charles Keating percebeu que um alvará de Caixa Económica era uma "licença para roubar". Nos anos 2000, a origem das hipotecas sub-prime foi em grande parte a mesma coisa. Dada uma licença para roubar, os ladrões começam a trabalhar. E porque o seu desempenho parece tão bom, eles rapidamente vêm a dominar os seus mercados; os maus jogadores expulsam os bons.

A complexidade do sector hipotecário-financeiro antes da crise destaca uma outra marca característica da fraude. No sistema desenvolvido, os documentos originais da hipoteca jazem enterrados – quando permanecem – nos registos dos originadores do empréstimo, muitos deles extintos desde então ou tomados por terceiros. Aqueles registos, se examinados, revelariam a extensão da documentação em falta, das práticas abusivas e da fraude. Até agora, temos apenas uma evidência muito limitada sobre isto, notavelmente um estudo de 2007 da Fitch Ratings sobre uma amostra muito pequena de RMBS [2] altamente taxadas, as quais descobrem "fraude, abuso ou documentação omissa em virtualmente todo ficheiro". Esforços feitos um ano atrás pelo deputado Doggett para persuadir o secretário Geithner a examinar e informar a fundo a extensão da fraude nos registos subjacentes às hipotecas foram totalmente torneados.


Quando hipotecas sub-primes foram empacotadas e titularizadas, as agências de classificação deixaram de examinar a qualidade do empréstimo subjacente. Ao invés disso substituíram [o exame] por modelos estatísticos, a fim de gerar classificações que fariam as RMBS resultantes aceitáveis para os investidores. Quando alguém assume que os preços sempre subirão, segue-se que um empréstimo titularizado pelos activos sempre pode ser refinanciado; portanto a condição real do tomador do empréstimo não importa. Aquela projecção é, naturalmente, apenas tão boa como a suposição subjacente, mas neste mercado concebido de forma perversa aqueles que pagam pelas classificações não têm razões para se importarem com a qualidade das suposições. Enquanto isso, agora os originadores de hipotecas têm uma fórmula para oferecer empréstimos aos piores tomadores que pudessem encontrar, seguros de que neste Lake Wobegon [3] invertido nenhuma criança seria considerada abaixo da média embora todas estivessem. A qualidade do crédito entrou em colapso porque o sistema foi concebido para ir para o colapso.


Um terceiro elemento na mixórdia tóxica foi um simulacro de "seguro", proporcionado pelo mercado em credit default swaps. Estes são instrumentos do juízo final num sentido preciso: eles geram fluxo de caixa para o emissor até que ocorra o evento de crédito. Se o evento for suficientemente grande, o emissor então falha, ponto em que o governo enfrenta chantagem: ele deve intervir ou o sistema entrará em colapso. Os CDS propagam as consequências de uma baixa nos preços das habitações por todo o sector financeiro, por todo o globo. Eles também proporcionam os meios para provocar curto-circuito no mercado de títulos apoiados por hipotecas residenciais, de modo que os maiores jogadores poderiam virar as costas e apostar contra os instrumentos que haviam previamente estado a vender, pouco antes de o castelo cartas entrar em crash.


Nos tempos actuais a teoria económica das finanças é cega a tudo isto. Ela necessariamente trata acções, títulos, opções, derivativos e assim por diante como títulos cujas propriedades podem ser aceites amplamente pelo seu valor facial e quantificadas em termos de retorno e de risco. Aquela quantificação permite o cálculo do preço, utilizando fórmulas padrão. Mas tudo na fórmula depende de os instrumentos serem o que são representados para ser. Pois se não o forem, então que fórmula poderia possivelmente aplicar-se?


Uma tendência mais antiga da teoria económica institucional entendia que um título é um contrato legal. Ele só podia ser tão bom quanto o sistema legal que estava atrás dele. Alguma fraude é inevitável, mas num sistema em funcionamento ela deve ser rara. Ela deve ser considerada – e correctamente – um problema menor. Se a fraude – ou mesmo a percepção da fraude – chega a dominar o sistema, então não há fundamento para um mercado de títulos. Eles tornam-se lixo. E mais profundamente, do mesmo modo as instituições responsáveis por criá-los, classificá-los e vendê-los. Incluindo, enquanto falhar em responder com a força apropriada, o próprio sistema legal.


Fraudes controladas sempre falham no fim. Mas o fracasso da firma não significa que a fraude tenha falhado: os perpetradores muitas vezes fogem ricos. Em algum momento, isto exige subverter, subornar ou vencer a lei. É aqui que o crime e os políticos se interceptam. No seu cerne, a crise financeira foi uma ruptura da regra da lei na América.

Perguntem-se a si próprios: será possível para originadores de hipotecas, agências de classificação, subscritores, seguradores e agências de supervisão NÃO terem sabido que o sistema financeiro de habitação tornara-se infestado de fraudes? Todo indicador estatístico de prática fraudulenta – crescimento e lucratividade – sugere o contrário. Até agora todo exame dos registos sugere o contrário. A própria linguagem em uso: "empréstimos mentirosos", "empréstimos ninja", "empréstimos neutrões" e "lixo tóxico" diz-lhe que as pessoas sabiam. Também ouvi a expressão "IBG,YBG", o significado desse código era: "Eu darei o fora, você dará o fora" ("I'll be gone, you'll be gone").


Se dúvidas subsistissem, a investigação dentro das comunicações internas das firmas e agências em causa pode esclarecê-las. Os emails são reveladores. O governo já possui pegadas documentais críticas – aquelas da AIG, Fannie Mae de Freddie Mac, o Departamento do Tesouro e a Reserva Federal. Esses documentos deveriam ser investigados, completamente, pela autoridade competente e também divulgados, quando apropriado, ao público. Por exemplo: será que intencionalmente a AIG emitiu CDSs contra instrumentos que a Goldman havia concebido em nome do sr. John Paulson para fracassar? Se assim for, por que? Ou outra vez: Será que a Fannie Mae e o Freddie Mac apreciaram a fraca qualidade das RMBSs que estavam a adquirir? Será que assim o fizeram sob a pressão do sr. Henry Paulson? Se assim for, será que o secretário Paulson sabia? E se o fez, por que ele actuou assim? Num documento recente, Thomas Ferguson e Robert Johnson argumentam que a "Opção Paulson" foi destinada a adiar uma crise inevitável para depois das eleições. Será que os registos internos confirmam esta visão?

Vamos supor que a investigação que estão prestes a começar confirme a existência de fraude generalizada, envolvendo milhões de hipotecas, milhares de avaliadores profissionais, subscritores, analistas e os executivos das companhias nas quais eles trabalhavam, bem como responsáveis públicos que a isso assistiam fechando os olhos. O que será a resposta apropriada?


Alguns parecem acreditar que a "confiança nos bancos" pode ser reconstruída por uma nova rodada de boas notícias económicas, pela ascensão dos preços das acções, pelas novas promessas de altos responsáveis – e pelo não olhar demasiado atentamente para a evidência subjacente de fraude, abuso, engano e burla. Ao prosseguirem vossas investigações, minarão, e acredito que possam destruir, tal ilusão.


Mas você tem de actuar. A alternativa verdadeira é uma fracasso a estende-se ao longo to tempo do sistema económico ao político. Da mesma forma como muitos poucos previram a crise financeira, pode ser que muito poucos estejam hoje a falar francamente acerca de onde um fracasso em tratar das consequências pode levar.


Nesta situação, deixem-me sugerir que o país enfrenta uma ameaça existencial. Ou o sistema legal deve fazê-lo funcionar. Ou o sistema de mercado não pode ser restaurado. Deve haver uma limpeza completa, transparente, efectiva e radical do sector financeiro e também daqueles responsáveis públicos que traíram a confiança pública. Aos financeiros deve-se fazê-los sentir, nos seus ossos, o poder da lei. E o público, o qual vive de acordo com a lei, deve ver muito claramente e sem ambiguidades que isto é o caso. Muito obrigado.


18/Maio/2010
[1] caveat emptor: regra nas leis dos contratos determinando que o vendedor não garante a qualidade de sua mercadoria sem um compromisso especificado

[2] RMBS: Residential mortgage-backed security
[3] Lake Wobegon : cidade fictícia no estado do Minnesota.



Texto de declaração escrita apresentada pelo autor ao Comité Judiciário do Senado dos Estados Unidos.




Crónica de uma tragédia anunciada, por Boaventura de Sousa Santos (óptimo texto para compreender o que se está a passar com as economias)

Crónica de uma tragédia anunciada
Boaventura de Sousa Santos

 
A tragédia grega da Antiguidade clássica distinguiu-se por ser portadora de questões universais. As questões tinham já sido levantadas noutros lugares e por outras culturas, mas tornaram-se universais ao servirem de base à cultura europeia. A actual tragédia grega não foge à regra. Identifiquemos as questões principais e as lições que delas retiramos.

OS CASTELOS NEO-FEUDAIS: DA DISNEYLÂNDIA À EUROLÂNDIA

Tudo o que se tem passado nos últimos meses na Europa do Sul ocorreu antes em muitos países do Sul global, mas enquanto ocorreu no “resto do mundo” foi visto como um mal necessário imposto globalmente para corrigir erros locais e promover o enriquecimento geral do mundo. A existência de critérios duplos para os mesmos erros – a dívida externa dos EUA ultrapassa o valor total da dívida dos países europeus, africanos e asiáticos; comparada com as fraudes cometidas por Wall Street, a fraude grega é um truque mal feito por falta de prática – passaram despercebidos e o mesmo aconteceu com as estratégias e decisões por parte de actores muito poderosos com vista a obter um resultado bem identificado: o empobrecimento geral dos habitantes do planeta e o enriquecimento sem sentido de uns poucos senhores neo-feudais apostados em livrarem-se dos dois obstáculos que o século passado pôs no seu caminho desvairado: os movimentos sociais e o Estado democrático (a eliminação do terceiro obstáculo, o comunismo, fora-lhes oferecida pelos arautos do “fim da história”). A tragédia grega veio revelar tudo isso.

Está hoje relatada em detalhe (com nomes e apelidos, hora e endereço em Manhattan) uma reunião de directores de fundos especulativos de alto risco (hedge funds) em que foi tomada a decisão de atacar o euro através do seu elo fraco, a Grécia. Alguns dias depois, em 26 de Fevereiro de 2010, o Wall Street Journal dava conta do ataque em preparação. Nessa reunião participaram, entre outros, o representante do banco Goldman Sachs, que tinha sido o facilitador do sobreendividamento da Grécia e do seu disfarce, e o representante do especulador de mais êxito e menos punido da história da humanidade, George Soros, que, em 1988, conduzira o ataque à Société Générale e, em 1992, planeara o afundamento da libra esterlina (tendo ganho num dia 1000 milhões de dólares). A ideia do mercado como um ser vivente que reage e actua racionalmente deixou de ser uma contradição para passar a ser um mito: o mercado financeiro é o castelo dos senhores neo-feudais.

O que os relatos raramente mencionam é que esses investidores institucionais, reunidos em Manhattan numa noite de Fevereiro, sentiram que estavam a cumprir uma missão patriótica: liquidar a pretensão de o euro vir a rivalizar com o dólar enquanto moeda internacional. Os EUA são hoje um país insustentável sem essa prerrogativa do dólar. Se os países emergentes, os países com recursos naturais e produtores de commodities – que o capital financeiro há muito identificou como o novo El Dorado – caíssem na tentação de colocar as suas reservas em euros (como antes tentara Saddam Hussein e pelo qual pagou um preço alto), o dólar correria o risco de deixar de ser a pilhagem institucionalizada das reservas do mundo e o privilégio extraordinário de imprimir notas de dólares de pouco valeria aos EUA. O golpe foi dado com peso e medida: aos EUA interessa um euro estável na condição de tal estabilidade ser tutelada pelo dólar. É isso o que está em curso e é essa a missão do FMI. Tal como aconteceu no passado, o poder financeiro é o último a ser perdido pela potência hegemónica no sistema mundial. Na longa transição, “os interesses convergentes” são sobretudo com os países emergentes (no caso, China, Índia, Brasil) e não com o rival mais directo (o capitalismo europeu). Tudo isto foi patente na Conferência da ONU sobre a Mudança Climática realizada em Dezembro passado em Copenhaga.

A FALTA QUE O COMUNISMO FAZ

Os economistas latino-americanos Óscar Ugarteche e Alberto Acosta descrevem como, em 27 de Fevereiro de 1953, foi acordada pelos credores a regularização da imensa dívida externa da então República Federal Alemã [1]. Este país obteve uma redução de 50% a 75% da dívida derivada, directa ou indirectamente, das duas guerras mundiais; as taxas de juro foram drasticamente reduzidas para entre 0 e 5%; foi ampliado o prazo para os pagamentos; o cálculo do serviço da dívida foi definido em função da capacidade de pagamento da economia alemã e, portanto, vinculado ao processo de reconstrução do país. A definição de tal capacidade foi entregue ao banqueiro alemão Herman Abs que presidia à delegação alemã nas negociações. Foi criado um sistema de arbitragem ao qual nunca se recorreu dadas as vantajosas condições oferecidas ao devedor.

Este acordo teve muitas justificações, mas a menos comentada foi a necessidade de, em pleno período da Guerra Fria, levar o êxito do capitalismo até bem perto da Cortina de Ferro. O mercado financeiro tinha então, tal como hoje, motivações políticas; só que as de então eram muito diferentes das de hoje e em boa parte a diferença explica-se pelo facto de a democracia liberal se ter tornado no energy drink do capitalismo, que aparentemente o torna invencível (só não o defende de si próprio, como já profetizou Schumpeter). Angela Merkel nasceria um ano depois e só depois de 1989 viria a conhecer em primeira-mão o mundo do lado de cá da Cortina. Nasceu politicamente a beber essa energy drink, o que, combinado com a militante ignorância da história que o capitalismo impõe aos políticos, transforma a sua falta de solidariedade para com o projecto europeu num acto de coragem política. Sessenta anos depois da “Declaração de Interdependência” de Robert Schuman e Jean Monet, a guerra continua a “ser impensável e materialmente impossível”, mas, parafraseando Clausewitz, interrogamo-nos sobre se a guerra não está a voltar por outros meios.

O ESTADO COMO IMAGINAÇÃO DO ESTADO

Tenho vindo a escrever que a regulação moderna ocidental assenta em três pilares: o princípio do mercado, o princípio do Estado e o princípio da comunidade [2]. Estes três princípios (sobretudo os dois primeiros) têm historicamente alternado no protagonismo em definir a lógica da regulação. Tem sido convencionalmente entendido que a regulação social do período do pós-guerra até 1980 foi dominada pelo princípio do Estado e que de então para cá passou a dominar o princípio do mercado, o que se convencionou chamar neoliberalismo. Muitos viram na crise do subprime e da debacle financeira da 2008 o regresso do princípio do Estado e o consequente fim do neoliberalismo. Esta conclusão foi precipitada. Deveria ter funcionado como alerta a rapidez com que os mesmos actores que, durante a noite neoliberal, consideraram o Estado como o “Grande Problema”, passaram a considerar o Estado como a “Grande Solução”. A verdade é que, nos últimos trinta anos, o princípio do mercado colonizou de tal maneira o princípio do Estado que este passou a funcionar como um ersatz do mercado. Por isso, o Estado que era problema era muito diferente do Estado que veio a ser a solução. A diferença passou despercebida porque só o Estado sabe imaginar-se como Estado independentemente do que faz enquanto Estado. O sintoma mais evidente desta colonização foi a adopção da doutrina neoliberal por parte da esquerda europeia e mundial, o que a deixou desarmada e desprovida de alternativas quando a crise eclodiu. Daí, o triunfo da direita sobre as ruínas da devastação social que criara. Daí, que os governos socialistas da Grécia, Portugal e Espanha achem mais natural reduzir os salários e as pensões do que tributar as mais valias financeiras ou eliminar os paraísos fiscais. Daí, finalmente, que a União Europeia ofereça o maior resgate do capital financeiro da história moderna sem impor a estrita regulação do sistema financeiro.

O FASCISMO DENTRO DA DEMOCRACIA

Nos anos 20 do século passado, depois de uma longa estadia em Itália, José Mariátegui, grande intelectual e líder marxista peruano, considerava que a Europa daquele tempo se caracterizava pela aparição de duas violentas negações da democracia liberal: o comunismo e o fascismo [3]. Cada uma à sua maneira tentaria destruir a democracia liberal. Passado um século, podemos dizer que, no nosso tempo, as duas negações da democracia liberal – que hoje chamaríamos socialismo e fascismo – não enfrentam a democracia a partir de fora; enfrentam-na a partir de dentro. As forças socialistas são hoje particularmente visíveis no continente latino-americano e afirmam-se como revoluções de novo tipo: a revolução bolivariana (Venezuela), a revolução cidadã (Equador), a revolução comunitária (Bolívia). Comum a todas elas é o facto de terem emergido de processos eleitorais próprios da democracia liberal. Em vez de negar a democracia liberal, enriquecem-na com outras formas de democracia: a democracia participativa e a democracia comunitária. Se considerarmos a democracia liberal um dispositivo político hegemónico, as lutas socialistas de hoje configuram um uso contra-hegemónico de um instrumento hegemónico.

Por sua vez, as forças fascistas actuam globalmente para mostrar que só é viável uma democracia de muito baixa intensidade (sem capacidade de redistribuição social), confinada à alternativa: ser irrelevante (não afectar os interesses dominantes) ou ser ingovernável. Em vez de promover o fascismo político, promovem o fascismo social. Não se trata do regresso ao fascismo do século passado. Não se trata de um regime político, mas antes de um regime social. Em vez de sacrificar a democracia às exigências do capitalismo, promove uma versão empobrecida de democracia que torna desnecessário e mesmo inconveniente o sacrifício. Trata-se, pois, de um fascismo pluralista e, por isso, de uma forma de fascismo que nunca existiu. O fascismo social é uma forma de sociabilidade em que as relações de poder são tão desiguais que a parte mais poderosa adquire um direito de veto sobre as condições de sustentabilidade da vida da parte mais fraca. Quem está sujeito ao fascismo social não vive verdadeiramente em sociedade civil; vive antes num novo estado de natureza, a sociedade civil in-civil.

Uma das formas de sociabilidade fascista é o fascismo financeiro, hoje em dia talvez o mais virulento. Comanda os mercados financeiros de valores e de moedas, a especulação financeira global, um conjunto hoje designado por economia de casino. Esta forma de fascismo social apresenta-se como a mais pluralista na medida em que os movimentos financeiros são aparentemente o produto de decisões de investidores individuais ou institucionais espalhados por todo o mundo e, aliás, sem nada em comum senão o desejo de rentabilizar os seus valores. Por ser o fascismo mais pluralista é também o mais agressivo porque o seu espaço-tempo é o mais refractário a qualquer intervenção democrática. Significativa, a este respeito, é a resposta do corrector da bolsa de valores quando lhe perguntavam o que era para ele o longo prazo: «longo prazo para mim são os próximos dez minutos». Este espaço-tempo virtualmente instantâneo e global, combinado com a lógica de lucro especulativa que o sustenta, confere um imenso poder discricionário ao capital financeiro, praticamente incontrolável apesar de suficientemente poderoso para abalar, em segundos, a economia real ou a estabilidade política de qualquer país. A virulência do fascismo financeiro reside em que ele, sendo de todos o mais internacional, está a servir de modelo a instituições de regulação global há muito importantes, mas que só agora começam a ser conhecidas do público. Entre elas, as empresas de rating, as empresas internacionalmente acreditadas (mesmo depois do descrédito que sofreram durante a crise de 2008) para avaliar a situação financeira dos Estados e os consequentes riscos e oportunidades que eles oferecem aos investidores internacionais. As notas atribuídas são determinantes para as condições em que um país ou uma empresa de um país pode aceder ao crédito internacional. Quanto mais alta a nota, melhores as condições. Estas empresas têm um poder extraordinário. Segundo o colunista do New York Times, Thomas Friedman, «o mundo do pós-guerra fria tem duas superpotências, os EUA e a agência Moody’s». Friedman justifica a sua afirmação acrescentando que «se é verdade que os EUA podem aniquilar um inimigo utilizando o seu arsenal militar, a agência de qualificação financeira Moody’s tem poder para estrangular financeiramente um país, atribuindo-lhe uma má nota». Num momento em que os devedores públicos e privados entram numa batalha mundial para atrair capitais, uma má nota pode significar o colapso financeiro do país. Os critérios adoptados pelas empresas de rating são em grande medida arbitrários, reforçam as desigualdades no sistema mundial e dão origem a efeitos perversos: o simples rumor de uma próxima desqualificação pode provocar enorme convulsão no mercado de valores de um país. O poder discricionário destas empresas é tanto maior quanto lhes assiste a prerrogativa de atribuírem qualificações não solicitadas pelos países ou devedores visados. O facto de ser também um poder corrupto – as agências são pagas pelos bancos que avaliam e actuam na especulação financeira, tendo, por isso, interesses próprios nas avaliações que fazem – não mereceu até agora qualquer atenção. A virulência do fascismo financeiro reside no seu potencial de destruição, na sua capacidade para lançar no abismo da exclusão países inteiros. Quando o orçamento do Estado fica exposto à especulação financeira – como sucede agora nos países do sul da Europa – as regras de jogo democrático que ele reflecte tornam-se irrelevantes, a estabilidade das expectativas que elas promovem desfaz-se no ar.

TUDO O QUE É SÓLIDO SE DESFAZ NO AR

É bem conhecido o modo como o Manifesto Comunista de 1848 descreve a incessante revolução dos instrumentos de produção por parte da burguesia: «Tudo o que era sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade as suas condições de existência e as suas relações recíprocas». Quando a usurpação da política por parte de uma econopolícia selvagem atinge os lugares sagrados da democracia, dos direitos humanos, do contrato social e do primado do direito, que até há pouco serviam de santuário de peregrinação para os povos de todo o mundo, a perturbação e o desassossego são o que resta da solidez. A grande incógnita é de saber até que ponto o empobrecimento do mundo e da democracia produzido pelo casino financeiro vai continuar a ocorrer dentro do marco democrático, mesmo de baixa intensidade. Podemos esquecer Mariátegui?

[1] Ugarteche, Óscar y Acosta, Alberto, Repensando una propuesta global para un problema global, ALAI, 11/05/2010; e Plädoyer für ein Internationales Schiedsgericht für souveräne Schulden (TIADS), erlassjahr.de, 20/05/2003 [consultados em 11/05/2010].

[2] Santos, Boaventura de Sousa, Vers un nouveau sens commun juridique: Droit, science et politique dans la transition paradigmatique. Paris: Librairie Général de Droit et Jurisprudence, 2004.

[3] Mariátegui, José Carlos, Ensayos escogidos. Lima: Editorial Universo, 1925.

Julgamento da Manif do 25 de Abril de 2007: resumo das sessões e convocatória para concentração solidária


Ao fim de 5 meses, o julgamento dos 11 detidos no 25 de Abril de 2007, chega às alegações finais.

A decorrer desde 22 de Janeiro de 2010, o julgamento dos 11 acusados detidos na manifestação antifascista e anti-autoritária de 25 de Abril de 2007, tem tido lugar no Campus de Justiça de Lisboa, situado no Parque das Nações. No próximo dia 15 de Junho terão lugar as alegações finais.
Fica de seguida um pequeno resumo dos argumentos e episódios mais marcantes deste julgamento.
(...)

Os processos e os julgamentos fazem-nos os juízes e o Estado, a luta fazêmo-la nós porque continuamos na rua.

Concentração em Solidariedade com os detidos na Manifestação do 25 de Abril de 2007
15 de Junho, 3ª-feira
às 12h30
em frente ao Campus de Justiça de Lisboa
Av. D. João II (Parque das Nações/Gare do Oriente)



Fica de seguida um pequeno resumo dos argumentos e episódios mais marcantes deste julgamento.
Na primeira sessão do julgamento foi lida a acusação do DIAP contra os arguidos; esta consistia em injúrias, agressão qualificada e tentativa de agressão qualificada, sendo que sobre cada arguido pendem acusações diferentes. Nenhum deles prestou declarações.
Na segunda sessão foram iniciadas as declarações das testemunhas de acusação, ou seja, membros dos variados corpos policiais tais como investigação criminal, Corpo de Intervenção e Serviço de Intervenção Rápida, sendo que uns eram apenas operacionais e outros chefes. Testemunharam, no total, 13 polícias.

A todas as testemunhas foi pedida uma descrição geral da situação com que se depararam na baixa de Lisboa, no dia 25 de Abril de 2007.
Das declarações iniciais salta à vista o facto de todos os polícias divergirem em relação ao número de pessoas que integravam a manifestação. No geral, descrevem uma manifestação assustadora, de pessoas de cara tapada proferindo insultos a tudo e a todos.
Durante todo o julgamento a questão da ordem de dispersão foi recorrente, sendo que todos os polícias concordam com a sua existência mas divergem em relação ao local, momento, forma e palavras utilizadas.
Facto relevante é o de haver um dos polícias que afirma que as forças da ordem não intervieram durante o percurso da manifestação já que o dia era 25 de Abril e que não queriam ser conotados por um lado “com outras coisas”, "com a polícia do antigo regime" e por outro com uma polícia “impiedosa”. Este afirma também que um dos problemas talvez tenha sido deixarem a manifestação sair da Praça da Figueira, ou seja, quando nada daquilo que eles acusam a manifestação tinha acontecido. Isto demonstra a vontade de, pelo menos, a PSP impedir encontros e manifestações de indivíduos com ideias fora do espectro político, independentemente das desculpas que os polícias depois encontrem para espancar e deter esses indivíduos.

As declarações policiais prosseguem e centram-se agora num episódio que dá origem à sequência de acontecimentos na rua do Carmo: algumas pessoas são interpeladas (número que muda dependendo da testemunha), para serem identificadas por alegadamente estarem a pintar paredes no cimo da Rua do Carmo, quando se encontravam sozinhas e isoladas da manifestação, que por esta altura descia a rua. Perante esta situação a manifestação veio em auxílio dos interpelados, e é nesta altura que um dos agentes se queixa de lhe ter sido feita uma "gravata". De referir que estes polícias atacaram por trás, à paisana e infiltrados nas muitas pessoas que por ali passavam e apresentaram os gritos dos alegados “pintores”, que pediam ajuda, como algo surpreendente
Em relação ao mesmo episódio, há ainda um polícia que apresenta uma outra versão dos acontecimentos, afirmando que tiveram lugar no início da rua Garret a 20-30 metros da saída do metro da Baixa-Chiado. Difere ainda no número de pessoas que desciam a rua, sendo agora cerca de 400-500 pessoas contra as 100-150 que os seus colegas apontam.

Um dos agentes, perante algumas fotos que estão anexadas enquanto provas no processo (fotos onde se vêem polícias de bastão na mão e pessoas sentadas no chão a serem obviamente espancadas por estes), afirma que não sabe o que fazem esses polícias com o bastão na mão e que “devem estar a intervir”. Um outro polícia declara que havia espaço e saídas para todos os que quisessem deixar aquela zona sem entrar em contacto com os agentes. Será importante então sublinhar que a rua do Carmo tem cerca de 200m de comprimento, com prédios em toda a sua extensão, com uma única saída a meio (elevador), sendo esta estreita, com escadas e em obras naquela altura (com taipais) e, também, que estavam dois conjuntos de polícias a carregar em ambos os sentidos. Mesmo para quem quisesse sair “ordeiramente”, como seria isso possível?

Por entre as testemunhas de acusação declara uma pessoa que, aparentemente, não se enquadra na profissão das outras, sendo no entanto pior que estas. Uma trabalhadora da loja de roupa GARDENIA afirma que uma manifestação nada pacífica, com cartazes anti-fascistas sobe a rua Garret e mantém-se calma devido à presença da polícia. Ao fazer o percurso inverso, os manifestantes vêm mais violentos e, segundo esta senhora, arremessando bolas de tinta. Afirma ainda que não tem dúvidas de que o grupo era organizado e que a sua loja estaria marcada já que na parede exterior se encontrava um autocolante com um “cocktail molotov”. As ilações desta testemunha são simplesmente ridículas, chegando ao ponto de o próprio procurador comentar que é normal numa manifestação frases de confronto. Além disso, dizer que um autocolante na porta indica que se seguirá um ataque, é de uma imaginação incrível e de uma ausência de realidade perturbante. Mas nada disso surpreende, pois desde o início que as alegadas bolas de tinta contra a loja são referidas como “agressões”

A questão das linhas policiais foi também alvo de declarações neste processo. Os agentes declaram versões contraditórias no que concerne à linha policial formada na parte de baixo da rua do Carmo. É consensual que todas as forças policiais que a formavam, partiram da rua da Prata, onde aliás se encontravam a proteger a sede do PNR.
Existem, no entanto, divergências sobre a razão que os leva a permanecer lá, bem como o tempo que lá estiveram. Uns estariam de prevenção porque havia informações prévias de que iria haver um ataque contra a sede do PNR. Outros foram para sede do PNR porque ouviram os manifestantes gritar a intenção de ir para a rua da Prata.
Recorrente durante todas as sessões foram as contradições dos agentes quando pressionados para precisar as suas respostas. Perante estas pressões os agentes simplesmente fazem uso da sua imaginação dando uma série de dados contraditórios.
A pedido de um advogado, vários agentes descrevem a indumentaria característica neste tipo de situações. As testemunhas dizem que utilizam um fato anti-traumático constituído por equipamento de protecção em determinadas zonas do corpo tais como o tórax e as pernas, existindo alguma vulnerabilidade na parte interior dos braços, costas e ombros.
Os agentes, tanto do Corpo de Intervenção como do Serviço de Intervenção Rápida, tentaram durante todo o julgamento passar a ideia de que os seus corpos policiais eram extremamente eficientes e organizados. A verdade é que os seus testemunhos revelam uma prática totalmente desorganizada e caótica, já que linhas e grupos se formavam e quebravam e as equipas se misturavam durante a operação.


As testemunhas de defesa, 9 ao todo, relataram o clima de confusão gerado pela polícia a partir da rua do Carmo, com perseguições pelas ruas envolventes. No meio da intervenção policial há relatos que os agentes que se encontravam no topo da rua do Carmo mandavam as pessoas descer a rua, ao passo que os de baixo as mandavam subir, causando uma sensação de “sanduiche”. É também consensual que não houve qualquer ordem de dispersão.

O que aqui fica é apenas um resumo daquilo que tem sido dito nas audiências de tribunal. A vida dentro de uma sala de audiência é obviamente limitada por aqueles que mantêm a existência dessa sala. Para todos os outros e também para aqueles que nas ruas se recusam a obedecer ao Estado e à polícia esse conjunto de leis e processos são não mais que a guilhotina que pende sob as suas cabeças. Embora seja um julgamento importante devido ao que representa a manifestação de Abril de 2007 (a facilidade com que a polícia faz o que quer nas ruas, a tentativa de acabar com uma mobilização que era essencialmente autónoma, sem líderes nem liderados) muitos outros julgamentos decorrem por aí espalhados pelas muitas salas de tribunal de Portugal e do Mundo. Aliás, desde 2007 muitas mais razões temos para lutar do que apenas as várias repressões a manifestações. No fundo é para continuar com a luta contra este e qualquer outro sistema que consideramos importante combater este julgamento e todo este processo, pois se deixamos a memória da luta tornar-se em declarações ao tribunal esta fica dependente de juízes e “testemunhas” e inevitavelmente encerrada nas salas de audiência. Corremos assim o risco de que para a próxima também nós nos sintamos isolados lá dentro.

Os processos e os julgamentos fazem-nos os juízes e o Estado, a luta fazêmo-la nós porque continuamos na rua.

Concentração em Solidariedade com os detidos na Manifestação do 25 de Abril de 2007
12h30
Campus de Justiça de Lisboa
Av. D. João II (Parque das Nações)