25.11.07

Centenário do nascimento de Roberto das Neves, o mais conhecido anarquista individualista português


Em Setembro deste ano de 2007, Roberto das Neves, anarquista individualista português, natural de Pedrogão Grande, completaria 100 anos se ainda vivesse. Em sua memória deixamos aqui a sua bio-bibliografia, alguns poemas, textos e traduções que foram publicados pela editora Germinal, de que foi fundador e principal impulsionador, e a quem se deve um papel ímpar na divulgação do anarquismo e das ideias libertárias no Brasil, para onde foi viver a dada altura da sua vida, e cujo trabalho de difusão também chegou a Portugal, para onde eram enviados igualmente algumas das suas edições.

Todos os textos foram retirados do site do seu filho, com o mesmo nome que o seu pai, expressamente criado para recordar a pessoa e a obra de Roberto das Neves pai, e onde se encontram disponíveis outros textos e informações, para consulta e leitura, e cuja visita recomendamos:

http://betodasneves.multiply.com/journal/item/14




Roberto das Neves
(nota bio-bibliográfica, por Manuel Pedroso Marques)


Roberto das Neves, cidadão do mundo, nascido em Pedrógão Grande, terra de onde resguardava as memórias das gentes e das paisagens que nunca esqueceu ao longo de toda a sua vida.


Anarquista que o acontecimento do 25 de Abril deixou tão feliz que, como então escrevia a um amigo, "quase chegou a cometer o perjúrio de se sentir patriota".


Treze vezes preso por motivos políticos (onze em Portugal e duas no Brasil), foi poucas vezes julgado e nunca condenado.


Individualista fascinado pela criação da inteligência dos outros; solidário em extremo com os seus companheiros de ideias.


Escritor e cultor com peculiar afecto da Língua Portuguesa ("porque não havia uma língua universal"), foi esperantista, professor de Esperanto e publicou em Portugal um Curso de Esperanto e foi co-autor de um Dicionário Português-Esperanto e Esperanto-Português que nunca chegou a ser publicado.


Ateu, não por indiferentismo mas por anti-clericalismo, "convicto das dúvidas sobre a existência de Deus", mas atraído pelas para-ciências e por todas as indagações misteriosas e mais ou menos obscuras que a "ciência académica, oficial, recusa". Panteísta: "se a Natureza for Deus… Deus existe".


Maçon desde novo, numa linha que não reúne consenso generalizado, de afirmação de uma atitude anti-clerical para a maçonaria e de debate de política e não apenas de outros campos de ideias.


Grafólogo, apresentou uma tese de conclusão da sua licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas, na Universidade de Lisboa, afirmando o método grafológico como um dos que podem contribuir para caracterizar a personalidade. Apesar daquele curso compreender, na altura, a área da Psicologia, não teve arguente na Faculdade porque o tema era, então, completamente desconhecido, mas obteve aprovação… e dedicou-se durante toda a vida à grafologia.


Vegetariano, macrobiótico e militante de regimes alimentares e de vida a que atribuía os fundamentos de vida saudável, como o nudismo, a vida ao ar livre, o antitabagismo, a abstenção de álcool e a recusa de medicamentos.


A identidade de Roberto Barreto Pedroso Neves poderá definir-se por estas anotações de pensamento e de vida. Há coerência, haverá incoerências. Mas, atenção!, para Roberto das Neves a coerência era o efeito de uma relação dele para com ele mesmo, de uma relação estritamente individual.

Ele era um anarquista individualista, na linha de Max Stirner, sempre em oposição à orientação colectivista, bacunineana. O indivíduo, com sentido de ego, era o fim social. As organizações sociais eram manifestações burocráticas. Os Estados eram a expressão máxima dessa burocracia. A sociedade só se podia organizar com e na perfeição dos indivíduos.


Todavia, era um homem de causas, empenhado nas lutas cívicas que as serviam. As suas actividades cívicas, profissionais e intelectuais depõem sobre ele. Foram vividas intensamente, mais por amor e amadorismo que por profissão e carreirismo profissional, político ou outro, embora rigoroso ao extremo na sua verdade.


O percurso da vida de Roberto das Neves começa em Pedrógão Grande, no dia 7 de Setembro de 1907 e, quando chega a altura do liceu, em Coimbra, onde os seus pais residiam, com mais cinco filhos. Freqüenta os primeiros anos da licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas. Foi dos primeiros estudantes a serem presos a seguir ao "28 de Maio", juntamente com Vasco da Gama Fernandes, seu colega e amigo. Foi-o várias outras vezes. Em 1927 é preso por andar a distribuir panfletos de sua autoria propagando os ideais anarquistas. Dois anos depois é novamente preso como director do jornal "A Egualdade" ligado à Federação Regional dos Anarquistas do Norte. Em 1930, é mais uma vez preso, acusado de divulgar ideias subversivas (…), sendo ferido e preso numa manifestação popular, em Lisboa, no Campo Santana.



Espanha – Passados alguns anos (e mais algumas prisões), já como jornalista de "O Primeiro de Janeiro", vai para Espanha (1931), interrompendo o seu curso, em Coimbra, cujas praxes académicas haviam merecido o seu repúdio expresso, pelo espírito "conservador e alcoólico" que as caracterizava.


Em Madrid liga-se ao movimento anarquista espanhol, ajuda na reestruturação da Federação Anarquista de Portugueses Exilados e escreve no jornal "Rebelião", órgão oficial desta organização. Aqui, conviveu com outros portugueses que lá se encontravam exilados, como Jaime Cortesão, Jaime de Morais e Alberto Moura Pinto, e ainda o Coronel Velez Caroço entre outros. Os três primeiros (os “Budas” como na oposição eram chamados) viria a encontrar mais tarde, no Brasil, para onde fora em 1942.


Vive das crónicas madrilenas e dos artigos que envia para aquele jornal portuense, na altura, um dos melhores do país. Mas o pagamento era pouco e irregular. Quando o dinheiro atrasava para pagar a pensão, algumas vezes dormiu enrolado na sua capa, que conservara de estudante de Coimbra, no jardim de O Retiro, no centro de Madrid, em cuja situação conhece uma jovem atraída por "um homem bonito que se via logo que não era vagabundo"… e com quem vem a casar e a ter uma filha que viera a nascer também em Pedrógão Grande.
(Vinte e seis anos depois, eu e esta sua filha, Primavera, viríamos a casar e a ter a nossa filha Maria Alexandra. Nenhuma pode ler estas linhas. Faleceram. Muito cedo.)



Conspiração em Portugal – De regresso a Portugal, Roberto das Neves vive em Lisboa, escreve para vários jornais vindo a ser jornalista n’O Século. Conclui a sua licenciatura em Histórico-Filosóficas e interessou-o a Psicologia e a Para-Psicologia a que associava a Grafologia. Muito popular na Universidade pela vivacidade da sua inteligência, a originalidade das ideias e pela leitura das letras dos e das colegas, dos namorados e das namoradas…


Faz amizade com José Barão, jornalista de O Século e fundador do "Jornal do Algarve", com Emídio Santana, Mário de Oliveira, Marques da Costa e outros anarquistas, como o anarquista angolano Inocêncio da Câmara Pires, além de outros oposicionistas à ditadura salazarista, de diferentes proveniências ideológicas, como José Magalhães Godinho, Filipe Mendes, Carvalhão Duarte, Henrique de Barros, Piteira Santos, Castro Soromenho e muitos outros com quem mantinha correspondência assídua. Com o poeta goês Adeodato Barreto mantém a amizade que vinha dos tempos de Coimbra, deixando-lhe a sua morte prematura uma inesquecível e terna recordação.


A conspiração contra a ditadura salazarista continua. Há registo de prisões suas nos arquivos da Pide. Duas no Alentejo, em 1933 e 1937, mas consegue convencer a organização local de que não andava em contactos políticos mas sim na prosaica missão de angariar publicidade para uma publicação.


Durante a Guerra Civil de Espanha, quando as forças republicanas já se encontravam em desvantagem, começaram a aparecer em Portugal muitos refugiados espanhóis, clandestinos. Franco e Salazar estabeleceram uma “entente” que se traduzia na entrega dos refugiados que fossem presos às forças franquistas e em deixar em liberdade os que tivessem conseguido obter documentos junto da embaixada do México, em Lisboa, até que fossem transferidos para aquele país longínquo, o que aconteceu por duas vezes, com o afretamento de um navio de passageiros que levou mais de dois mil republicanos espanhóis. Neste período, a mulher de Roberto das Neves, Maria Jesusa Saiz y Diaz, andava acompanhada de uma das suas amigas, muitas vezes a Berta Mendes, mulher do escritor Manuel Mendes, pelas ruas da baixa de Lisboa, a falar espanhol ostensivamente alto… para que algum refugiado se aproximasse a pedir auxílio. Assim conseguiu esconder em casa dezenas de pessoas, até que Roberto das Neves entrava em contacto com a embaixada, com as fotografias, para obter o passaporte e as pessoas pudessem esperar em liberdade a sua transferência para o México.


(Quase trinta anos depois, um destes lê num jornal de Caracas que um “capitão português, genro de Roberto das Neves, se encontrava em asilo político diplomático na Embaixada do Brasil em Lisboa”. O capitão era eu. Recebo uma carta dando-me solidariedade e transportando um cheque com a quantia que um então velho professor de matemática e ex-oficial do Exército republicano espanhol podia dispor.)

Brasil. Editora Germinal – Durante a 2ª Grande Guerra, Roberto das Neves emigra para o Brasil, com a mulher e a filha, passando a viver no Rio de Janeiro. Arranja trabalho em alguns jornais, de início, mas a sua vida de trabalho vem centrar-se na editora Germinal e no Instituto de Pesquisas Grafológicas. A actividade editorial caracteriza-se pela divulgação das suas ideias anarquistas, de concepção de vida e saúde e, indefectivelmente, pela oposição ao regime de Salazar.


Na Germinal – nome sugestivo para anarquista – publica obras de combate à ditadura de Salazar, da autoria do Capitão Henrique Galvão (“Operação Dulcineia”, sobre o assalto ao paquete Santa Maria), do Capitão Fernando Queiroga (“Portugal Oprimido”), do Comandante Oliveira Pio (“Fascismo Ibérico”) e do General Humberto Delgado (“Tufão sobre Portugal”), além de outros, sobre temas anti-clericais, como os de autoria de Tomás da Fonseca (“Sermões da Montanha”, “Bancarrota da Igreja”, etc.).


Publica também livros sobre temas de saúde e alimentação, como Macrobiótica Zen, sobre o regime alimentar de Are Waerland, e outros cultivados na tradição alimentar tibetana, além de prospectos e folhetos que publicava sobre os mais variados temas, desde o anti-tabagismo à ridicularização dos comendadores endinheirados da colónia portuguesa, todos salazaristas, com duas únicas excepções: o Comendador Seabra e o Comendador Feteira.


No campo anarquista, a Germinal tinha duas vertentes: uma editorial e outra livreira. Editava obras de tese anarquista, cujo fundo compreendia autores como Daniel Guérin (O Anarquismo – Da doutrina à acção), José Oiticica (Ação Directa), Han Ryner (Manual filosófico do individualista), E. Armand (A Nova Ética sexual” e “Cooperativas de Amor”), V. Tcherkesof (“Erros e contradições do Marxismo”), entre outros. No catálogo de venda de livros estrangeiros, principalmente clássicos em francês ou espanhol, incluíam-se obras de E. Lanti, (O Manifesto dos Anacionalistas), Sébastien Faure, Proudhon, Kropótkin e outros de oposição à historiografia oficial da Revolução Soviética, como Vóline, que tratavam dos temas polémicos da oposição entre anarquistas e comunistas na então URSS e em Espanha, durante a guerra civil.


A Germinal teria, obviamente, um catálogo de “literaturo en esperanto” que incluía traduções de algumas das obras atrás citadas e de Goethe (“O Fausto”), de Tolstoi, Malatesta, Krishnamurti, Óscar Wilde, Jack London, Eugen Relgis, Rosa Luxemburgo, etc., editadas pelas comunidades esperantistas de todo o mundo e que a Germinal vendia, militante.


Bibliografia – Da sua própria autoria Roberto das Neves publicou, em Portugal, alguns poemas de juventude (“Maio em Flor”) e, de conteúdo mais político, “O Espectro de Buiça”, em 1926, logo apreendido pela polícia, além de uma monografia sobre a sua terra natal – Pedrógão Grande. Publicou ainda o que intitulou “Curso Completo de Esperanto”, em fascículos, que consistia numa adaptação de outros métodos de aprendizagem do Esperanto por falantes doutras línguas ocidentais para os de língua portuguesa. Os exemplares restantes da edição deste livro seriam transportados na bagagem de porão do navio, quando Roberto das Neves se transfere para o Brasil, com a família, e viriam a ser todos devorados por um incêndio ocorrido no 18º. andar de um conhecido edifício no centro do Rio de Janeiro, o edifício Rex, onde tinham acabado de se instalar a Editora Germinal e o Brazilia Instituto de Esperanto. Numa edição de autor, publicou a sua tese de licenciatura, “Os temperamentos e as suas manifestações gráficas”.

No Brasil editou, sob a chancela da Germinal e das Edições Mundo Livre, as seguintes obras:


“Assim cantava um cidadão do mundo” que reúne poesias de intervenção social desde os tempos de Coimbra. Mereceu críticas elogiosas de amigos e de companheiros de ideias, entre os quais Henrique de Barros, João de Castro Lira e de outros, como Luís Inácio Domingues (Gazeta do Brasil), Edmundo Moniz (Correio da Manhã) que diz: “se, por um lado, o carácter político de sua obra prejudica a sua forma artística, por outro lado dá-lhe grande relevo, pois nele temos um vigoroso panfleto, escrito em versos flamejantes, que tão bem interpreta os sentimentos e as aspirações de um povo oprimido, sofredor e revoltado” … “Na poesia de R. das N. não falta poder de comunicabilidade emocional, pois ele toca numa das teclas mais sensíveis da nossa época: a libertação material e espiritual”. De inspiração junqueiriana, os títulos de alguns dos seus poemas depõem sobre o conteúdo: ‘Sem bandeiras nem fronteiras’, ‘Não irei à guerra, César’, ‘Quero ser como tu, Satan’, ‘Um burro se confessa’, ‘Bernard Shaw chega ao Céu’, etc. Dedica alguns poemas ao Cardeal Cerejeira, que assevera ser ‘o maior ateu de Portugal’. Este seu primeiro livro, de maior fôlego, inclui um soneto satírico e autobiográfico, composto na prisão, que deixa escrito na parede da cela:


Nasceu em Pedrógão Grande
e é cidadão do Universo.
Suas revoltas expande
nas asas largas do verso!
Os sofrimentos do Povo
combate-os – louco idealista! –
e visiona um mundo novo,
em seus sonhos de anarquista.
Javerts sinistros, medonhos,
em prémio dão-lhe a delícia
de ir concluir os seus sonhos
nas masmorras da Polícia…



“O Diário do Dr. Satan” (Comentários subversivos às escorrências cotidianas da sifilização cristã), onde atinge o seu máximo de irreverência e crítica à religião católica e a todas as formas de dogmatismo religioso, político, cultural e científico. Satan (de Satanás, Lúcifer, das luzes…) foi o nome que R. das N. adoptou na maçonaria, em Lisboa. Quando acabou o seu curso de história e filosofia os amigos (irmãos) começaram a tratá-lo por “Dr.”, e daí o Dr. Satan. Nos seus comentários, os nomes de Hitler, Estaline, Franco e Salazar aparecem, com repetida frequência, irmanados na hediondez das respectivas ditaduras.


“Marxismo, escola de ditadores”, editado pela Mundo Livre, trata-se de um pequeno ensaio, incluído numa colecção de Cadernos da Juventude, onde, referindo as contradições que via em Marx, afirma as ideias anotadas pelos anarquistas de que “a ditadura do proletariado” não perderá a transitoriedade que Marx profetiza, perpetuando-se numa ditadura de partido único. Por outro lado, as análises correctas de Marx sobre o capitalismo da época "não lhe pertencem, pois, já haviam sido enunciadas pelos socialistas apodados com desdém de utópicos, que o antecederam".


Defende historicamente as utopias e os utopistas. "Utopias foram a monarquia liberal, no tempo das monarquias absolutas; o abolicionismo, na época da escravatura; a república, na era das monarquias; Júlio Verne e as viagens à Lua…" Este trabalho compreende uma exaustiva recensão das utopias escritas ao longo da História, e de que há conhecimento, no Brasil e no mundo.


“Entre Colunas” (livro cujo título revela a natureza ou a relação maçónica do conteúdo e do autor) reúne doze ensaios ou conferências proferidas nas lojas maçónicas: Labareda, de Coimbra; Rebeldia e Montanha de Lisboa; Aurora, do Porto; Republica Portuguesa, de Madrid; Libertá e Primeiro de Mayo, em Barcelona; Germinal, Pátria Humana, Maria Lacerda de Moura, Lusitânia Livre e Prof. José Oiticica, no Rio de Janeiro; e Francisco Ferrer y Guardia, de São Paulo. Da Maçonaria, R. das N. escreve que ela "não é, como se sabe, uma organização anarquista, anticapitalista, anti-religiosa, mas sim um laboratório de investigação filosófica, sociológico, científica, adogmática, uma tribuna livre, aberta a todas as doutrinas, numa busca incessante e ilimitada da Verdade. Possui um único dogma, se assim se lhe pode chamar: o culto da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade. É sobre esta pedra triangular que assenta o edifício doutrinário da Maçonaria". "Maçons, esses incansáveis investigadores e cultores da filosofia prática".

Na vertente prosélita dos regimes de saúde que associava à felicidade individual e ao bem estar social, do anti-consumismo e de uma certa austeridade de vida, escreveu e traduziu livros e opúsculos, entre os quais, “Você é macrobiótico ou vegetariano?”; “Método infalível para deixar de fumar”; “Duodecálogo do verdadeiro macrobiótico”. A “acção directa”, neste campo, consistiu na dinamização de uma cooperativa de restaurantes macrobióticos no Rio de Janeiro, que se pretendia estender pelo Brasil inteiro e que chegou a atingir considerável expressão económica e social, embora restrita àquela cidade.

No cultivo da literatura de combate pelo humor, pelo sarcasmo e pela obscenidade, ao bom estilo dos anarquistas do tempo em que a acção directa armada era por eles adoptada, Roberto das Neves fez coisas que narra em seus livros de que se arrependeu, mais tarde, por atentarem contra a liberdade de convicções dos outros. Estão neste caso inúmeras acções de ataque às crenças e rituais religiosos, como "o sujar com pó de sapato vermelho a água da pia de água benta da Sé de Coimbra"… "Coisas de juventude", explica, pedindo desculpa!

Outro exemplo desta forma de combate pelas ideias, neste caso usando a obscenidade, pode ver-se em vários opúsculos e panfletos, uns assinados outros apócrifos, como o que se refere à colónia de comendadores portugueses salazaristas do Brasil em que a obscenidade mais suave se manifestava pela grafia da palavra “culónia”, sempre com “u”…

Foi atacado por opositores, inimigos políticos e também por correligionários, neste caso quando se zangavam (porque o humor é difícil de manter zangado), por esta sua vertente de “combate literário”. Defendia-se, dizendo que não era pornógrafo nem pornográfico, pelo rigor de linguagem e precisando que as obscenidades ajudavam a ridicularizar os visados!... Na verdade, a qualidade de escrita que Roberto das Neves colocava nestes textos era desconcertante, não desmerecia do que conseguia escrever de melhor. Era uma forma de combate dos anarquistas, levada a sério, mas que também o divertia imenso…

Grafologia – A sua outra actividade mais regular desenvolvia-se no âmbito do Instituto de Pesquisas Grafológicas, que fundou no Rio de Janeiro, onde dava cursos de grafologia, desenvolvia estudos, participava em conferências e fazia análises grafológicas de candidatos a lugares que algumas firmas de selecção de pessoal lhe encomendavam. O seu principal cliente era uma universalmente conhecida empresa de lapidação de pedras preciosas e fabricante de jóias que tem o nome do seu principal dono – a H. Stern. Roberto das Neves foi chamado a realizar um estudo grafológico, numa determinada situação, em que um conjunto de pessoas era abrangido, inclusive um jovem chamado Hans, na altura, um modesto funcionário. Pelo perfil grafológico elaborado, tratava-se de um génio comercial. Que viria a tornar-se dono da empresa e um adepto da grafologia: o Sr. Hans Stern!


Oposição Portuguesa – Participa nas acções desenvolvidas pelos vários núcleos de emigrados políticos no Brasil. Pontualmente colaborava com comunistas, reunidos em torno do jornal Portugal Democrático; convocava os seus amigos anarquistas brasileiros para darem maior expressão às lutas da oposição a Salazar e cooperava com todos os outros exilados portugueses, como Sarmento Pimentel, José Santana Mota, engenheiro Baleisão e outros em São Paulo e Oliveira Pio, Armando Magalhães, Francisco Horta Catarino, além de muitos outros, no Rio de Janeiro.

A oposição alinhada com a Acção Socialista, no Brasil, após 1965 (que viria a transformar-se no Partido Socialista, em 1973) e outros sem qualquer alinhamento, constituíram um jornal de vida efémera, chamado "Oposição Portuguesa" para apoio do qual Roberto das Neves atraiu amigos seus da maçonaria. Creio que chegou a ter uma posição importante, creio que na loja Lusitânia Livre que reunia muitos dos velhos emigrados políticos portugueses e alguns brasileiros descendentes que faziam da luta pela liberdade em Portugal causa sua, como se portugueses fossem, como o seu amigo Dr. Miranda, proprietário de várias farmácias e garantia certa de que havia dinheiro para comprar a bobine de papel para imprimir o jornal…

O ambiente político e pessoal criado entre exilados políticos, em várias experiências ocorridas em diferentes épocas e vários lugares, tem sido caracterizado como fragmentário senão dissolvente das ligações de solidariedade entre homens com objectivos e lutas comuns. As roturas não são apenas ideológicas (que melhor se poderiam entender), antes derivam de um complexo de esperanças, ambições, frustrações, de incapacidade de adaptação ao país de exílio, do tempo de espera, do tempo que passa.

Roberto das Neves era perfeitamente adaptado à sociedade brasileira e fascinava-o algum exotismo cultural que nela via. Tinha amigos entre todas as raças e de várias proveniências e de todas as posições políticas de esquerda, com as restrições que os anarquistas que fizeram a guerra civil em Espanha guardaram para sempre em relação aos comunistas. Para Roberto das Neves, Cunhal e Salazar eram sinónimos.

Depois que o General Delgado chegou ao Brasil houve um certo entusiasmo entre os exilados com a sua presença. Roberto viria a ter confrontos sérios com o General, com insultos de parte a parte a marcar a polémica, que terminou com a expulsão de Delgado da Associação que tinha o seu nome... e com a sua transferência para outra terra de exílio, a Argélia. Estes factos assinalaram negativamente a imagem da oposição a Salazar, a Embaixada de Portugal "embandeirou em arco", afastando-se da actividade, por uns tempos, figuras da maior respeitabilidade como o Comandante Oliveira Pio, Lafayete Machado e outros.


Centro de Estudos Sociais José Oiticica – Roberto das Neves pertencia à direcção desta associação que homenageava, com o seu nome e finalidade, um democrata brasileiro, oposicionista à ditadura de Getúlio Vargas e um dos mais respeitados filólogos da nossa língua, do seu tempo. Constituíam a direcção o Prof. Serafim Porto, professor metodólogo de português do colégio Pedro II, o Dr. Ideal Perez, uma sumidade da reumatologia no Brasil, o Dr. Pietro Ferrua, ex-Director do CRSA, Centre de Recherches sur l’Anarchisme, de Genève, entre outros. A actividade do Centro resumia-se a uma conferência de 15 em 15 dias, com regularidade notável, com oradores convidados, sobre as velhas e emergentes questões sociais no Brasil e no Mundo.

Após o Acto Institucional nº 5, que, em 1968, concretizou a censura prévia à imprensa e aumentou a repressão política no país, a polícia política brasileira prendeu toda a direcção do Centro. Roberto das Neves já tinha sido preso durante a ditadura getulista, por denúncia de actividades subversivas feita por portugueses salazaristas. Desta vez, esteve preso numa base militar, da Força Aérea, na ilha do Governador, onde pretendi visitá-lo, sem que tal me fosse consentido. Invocando a minha qualidade de ex-capitão do Exército Português exilado político no Brasil, como tentativa de falar com alguém mais graduado, fui imediatamente levado à presença do comandante da Base, um Tenente-Coronel. Fui recebido como um camarada de armas. “Nós aqui já nos apercebemos que o Professor Roberto das Neves é uma pessoa especial, um homem muito culto”. Abre um armário que tinha na antecâmara do gabinete e mostra-me: em cada prateleira uma variedade de frutas, peras, maçãs, papaias, abacates… todas alinhadas como numa formatura. “É que o Professor não come cadáveres”, disse respeitosamente. Pedi para deixar um bilhete escrito, já que não podia falar com o Professor… (para que Roberto das Neves soubesse que já se sabia onde é que ele estava…) e parti com a absoluta certeza de que ele estava a "dar a volta" aos carcereiros.

Doze dias depois foi libertado e ficou a aguardar julgamento, que viria a realizar-se mais de um ano depois. Criou amizades entre os presos, que ficou a visitar, e o comandante não só aceitou passar a receber os catálogos da Germinal como ficou a pensar em aderir ao vegetarianismo.


Julgamento – Roberto das Neves não constituiu advogado, ao contrário dos seus companheiros de julgamento que eram seis ou sete. Na primeira audiência, depois de ser lida "a acusação" o juiz faz a pergunta sacramental, se o réu tem alguma coisa a dizer em relação à acusação. Roberto das Neves levantou-se e com toda a força de uma forte convicção diz: “Não me acusam de nada! Sou anarquista, ateu, maçon, esperantista e vegetariano”. “Em frente deste tribunal há duas estátuas, uma de Gandi que era anarquista, panteísta e vegetariano e outra do Marechal Duque de Caxias que foi Grão-Mestre da Maçonaria do Brasil”. “Há uma imprecisão no que chamam de ‘acusação’, que foi extraída de uma nota biográfica que consta de um livro meu. Não fui preso doze vezes. Fui mais uma, a que antecedeu este julgamento. Mas nunca fui condenado, fui sempre absolvido, como vai acontecer mais uma vez”.

O Juiz fez algum silêncio, antes de suspender a audiência por quinze minutos. Demorou talvez mais de uma hora e veio com a sentença feita. Absolveu os réus todos.


No início da década de sessenta Roberto das Neves casa pela segunda vez com uma antiga aluna de Esperanto, Maria Angélica de Oliveira de quem tem um filho, que vive no Rio de Janeiro e também se chama Roberto das Neves e que tem três filhos. Roberto das Neves morreu em 28 de Setembro de 1981.


Esta nota, na parte biográfica, foi elaborada com a contribuição do filho, Roberto das Neves, e da Professora Doutora Heloisa Paulo, autora de uma tese sobre os portugueses no Brasil e, actualmente, particularmente interessada e conhecedora dos movimentos da oposição à ditadura de Salazar-Caetano no Brasil, a quem agradeço as ajudas prestadas

Entrevista a Roberto das Neves, anarquista individualista, escritor e editor


Entrevista publicada pela revista Planeta nº 104, de Maio de 1981.
(Texto de Flamínio Araripe )


A trajectória deste incrível anarquista, individualista (no bom sentido), escritor e editor, deixa-lhe à vontade para repensar toda a história dos movimentos políticos, religiosos e das mais recentes trilhas e saídas existenciais da sociedade xarope contemporânea.


Roberto das Neves, 73 anos de idade, vegetariano desde os 16, português de nascimento, lutou na Revolução Espanhola, foi inimigo de Salazar (13 honrosas prisões), crítico do marxismo e defensor do socialismo libertário: este é o tipo de agitador que faz falta hoje. Ele ama as utopias e tem um saudável desprezo pelas instituições — por todas.


Amanhecer na Zona Norte do Rio de Janeiro. No bairro de Lins,o hospital da Marinha recebe os primeiros visitantes do dia. Sobem a rampa aventais brancos de médicos e enfermeiros, uniformes azuis e algum outro paisano sonolento. Perto dali me espera o poeta, editor e escritor individualista anarquista Roberto das Neves.
Há dois anos não o vejo. Soube que de saúde ele passa bem. Talvez o vegetarianismo que segue desde os 16 anos seja a razão de suas 73 primaveras lúcidas. Na calçada do prédio onde mora este português magrinho cujo exílio o fez carioca há mais de 30 anos, sob os raios de sol da manhã alguns velhos de bermudas conversam e aquecem o couro da barriga.


Quando toco a campainha do apartamento, o chumaço de papel que substitui o olho mágico mostra os olhos claros do poeta amante da liberdade. Vejo-o, alegre, com a mesma presença de espírito, ágil, convidar-me a entrar. Roberto conserva todo o vigor satírico de sua personalidade, confirmo ao receber de suas mãos um texto sobre a história das utopias que havia preparado na véspera para "poupar maçadas". Mesmo assim instalo o gravador diante dele.


Roberto mora hoje com o seu filho, e aquela que ele chama "minha companheira" há três anos partiu. Ele parece gostar do garoto, que tem seu mesmo nome e saiu para se matricular na universidade, onde passou "com distinção" no curso de jornalismo. Noto que a pequena sala do apartamento conta com seis estantes a menos. Ficaram apenas duas delas com obras em Esperanto – que é professor —, dicionários e clássicos do anarquismo, raridades em espanhol, francês, italiano e português. Todos livros amarelados, dos autores de sua predilecção: Han Ryner, E. Armand, Maria Lacerda de Moura e pensadores socialistas libertários, além de muita coisa sobre grafologia e dietética.


Parece que o lugar de actuação em múltiplas actividades de Roberto cedeu espaço para uma outra função por mim desconhecida em sua vida. Não vejo mais o arquivo com cartas coleccionadas, e a mesa grande da sala entulhada de jornais anarquistas de todo o mundo já não está mais ali, embora encontre exemplares dispersos pelo apartamento. O ambiente perdeu aquela atmosfera de saudável ebulição que ficou gravada em mim na primeira visita. Ante a janela agora é o local de trabalho dele, onde nos sentamos numa mesinha amontoada de papéis sob a qual vejo espalhados envelopes do ano passado, onde certamente os leitores solicitavam livros de sua editora, a Germinal.


A importância da utopia na história


Por enquanto Roberto não edita mais. Reclama do preço do livro hoje, que "o público não lê mais, no Brasil, principalmente", embora ainda tenha obras para editar. Uma delas, cuja tradução afirma estar pronta, é “Formas de Vida em Comum sem Estado nem Autoridade”, de E. Armand, a proposta que mais se identifica com a sua. Este texto tem muito a ver com a Germinal: conta as experiências práticas de comunas livres na Europa, em moldes individualistas anarquistas.


No espaço ocupado por sua editora é exercida urna actividade libertária que abrange o combate ao fumo, às doutrinas obscurantistas, ao poder, seja capitalista ou estatal, ao marxismo – "escola de ditadores" — e que é a favor do naturismo, contra a alopatia.


O escrito com que Roberto aguardou a minha presença se chama Breve História das Utopias e Colónias Experimentais Socialistas no Mundo e no Brasil.
Começa citando o historiador Max Nettlau, "o Heródoto do anarquismo", que disse do género tão escarnecido por Karl Marx e Friedrích Engels: "Facilmente se desprezam as utopias, consideradas por muitos como inúteis, ilusórias, contrárias à realidade e à ciência. Guardemo-nos de seguir essas vozes secas e utilitárias. O mundo é bastante pobre, tal como hoje se encontra, e por isso toda utopia é uma das mais belas e raras flores. O homem é verdadeiramente pobre se não afaga um sonho, se não leva no cérebro a eterna utopia de um ideal, colectivo ou individual, concebido na sua primeira juventude, construção muito variável, à qual acrescenta modificações em cada etapa de sua evolução moral e intelectual, que cresce, envelhece e morre com ele. Que vacuidade a do cérebro que não a conhece e que, por orgulho, resignação ou mera vulgaridade absoluta, não pensa mais além do presente! Pelo contrário, o carpediem vale sempre, mas os que estão absolutamente por ele são seres tão incompletos como os que vivem exclusivamente no sonho, na utopia."


Agora, com o texto manuscrito de Roberto das Neves, extraído de seu Marxismo, Escola de Ditadores: "A utopia é mais que um género literário, um fenómeno social de todas as épocas e uma das mais antigas formas de progresso e de rebeldia fecundante e renovadora. Porque o anseio que o homem sente – de elevar-se acima de um presente cinzento, sombrio ou injusto, só aceitável para o tirano, o usurpador, o explorador de seus semelhantes e para os homens sem horizontes, membros do panegírico rebanho humano —, converte-se em reflexão sobre o futuro, em visão do que poderá fazer-se e, finalmente, em dação, trabalho, investigação, e experiência."


Acrescenta que "nem sempre, porém, só a utopia vara as nebulosas do porvir". Porque às vezes "também a fantasia popular auxiliada pelo espectáculo dos homens primitivos", quando não havia "espoliação, restrições e repressões, se remetia a um estado de justiça, abundância e felicidade do passado". Segundo ele, é o caso da Idade de Ouro e do Paraíso, as primeiras utopias.


Roberto enumera em seguida várias criações ligadas à utopia, na literatura e na prática. Cita Platão, Rabelais, Thomas Campanella, Francis Bacon, Fenelon, Fontenelle, Montesquieu, Rousseau, Voltaire, entre outros. Menciona ainda Robert Owen e Thoureau — "verdadeiro individualista que vive a vida nos bosques" —, Tony Mollin, "mártir da Comuna de Paris, fuzilado nos Jardins de Luxemburgo", Luisa Michel, Etienne Cabet, James Guilhaume e Kropotkin.


Frutos maduros do sonho e o encontro com Ramatis


Para ele, a relação entre os motivos que impulsionavam as primeiras comunas e as iniciativas feitas nesse sentido actualmente é nítida: "Um regime libertário, sem o dinheiro, a propriedade individual, sem autoridade do homem sobre o seu semelhante e em regime de amor livre". Quer dizer: "Sem Estado, sem tribunais nem prisões".


A ideia-motor na crítica da sociedade actual neste individualista anarquista, assim como a base que norteia todas associações de carácter libertário, sempre é criar condições para vigorar o livre auxílio mútuo na condução dos assuntos colectivos. Com isto, visa-se preservar a soberania do indivíduo, considerado como pedra fundamental da sociedade. O libertário Roberto chega a admitir trabalhar em conjunto por um ideal revolucionário, desde que as bases do acordo para atuar em comum satisfaçam-lhe a integridade individual.


O manuscrito de Roberto defende em seguida a "Colónia Cecília", comuna de imigrantes italianos que durou 10 anos, cujo fim deveu-se à República, "mais reaccionária que o Império com D. Pedro II", de vez que resolveu cobrar impostos dos anarquistas. O mesmo texto toca, também, nas obras mediúnicas de Emmanuel, psicografadas por Francisco Cândido Xavier (Há Dois Mil Anos), e Hercílio Mães, Ramatis (Viagem ao Planeta Marte), por "reflectirem a aspiração ideal de nossa época, sem exércitos nem Estado, onde os povos se entendam por meio de um idioma comum".


Segundo ele, Ramatis o visitou e ambos encontraram pontos de aproximação entre a utopia mediúnica e a doutrina anarquista. Até no vegetarianismo estão de acordo. Mas a comunhão torna-se maior nesse "idioma comum", que imediatamente significa, para o individualista libertário, o universal esperanto. À medida que vê Ramatis reconciliar o ponto de vista espiritualista e anarquista, acusa Chico Xavier de reaccionário, embora não o tenha conhecido pessoalmente, "só de leituras".


O empreendimento autogestionário existente no município de Boa Esperança (ES) desperta-lhe entusiásticos elogios em sotaque luso. Não é por menos: do estado de falência decretada, até o posto de 22ª melhor renda entre as prefeituras brasileiras — o soerguimento da economia com base no auxilio mútuo –, é um feito de orgulhar qualquer anarquista. O bem-estar colectivo atesta o valor duma organização descentralizada e cooperativa, com solidariedade prática, o que fez com que "o poder político fosse transferido da prefeitura para as comunidades e respectivas assembleias, deixando a sede municipal de ser agência de empregos para parentes e amigos da administração".


Esta comprovada experiência do município capixaba, para Roberto, "é anarquista, embora seus organizadores não saibam disso. Pode não ter o nome de anarquia; isso não importa. Nem tudo o que tem o nome de anarquista é anarquista. E muita coisa sem esse nome é autenticamente anarquista."


"O que importa é que são focos de irradiação de novas doutrinas, de novos planeamentos."


Receita antitabagismo e toques sobre LSD


Na prática quotidiana de Roberto, porém, o seu desempenho deu-se predominantemente sozinho, na edição de livros e na pregação vegetariana com recomendações dietéticas em que responsabilizava sempre o Estado e o capitalismo pelos males da humanidade. De um panfleto de sua autoria a favor do naturismo:
"O vegetariano, revolucionário de uma revolução sem sangue, que conseguiu fortalecer a sua vontade e viver saudavelmente, livre da tirania dos vícios, não fuma, isto é, não faz da boca uma fornalha e do nariz uma chaminé, porque não ignora que o vício do tabaco, parente, segundo Freud, de equivalente vício sexual, só é proveitoso para os trustes industriais, capitalistas, e para o Estado, que em todo mundo exploram e envenenam a humanidade ignara, e constitui o primeiro passo na iniciação em outros vícios não menos perigosos, entre os quais o da maconha e o do LSD."


Contra o vício de fumar – "uma das principais fontes de renda do Estado" –, Roberto um dia pesquisou, imprimiu e distribuiu "infalível método". É o seguinte:
"Diariamente, ao levantar-se e à noite, o viciado, na posição de sentido perante um espelho, exproba-se, atirando, nas suas próprias bochechas reflectidas, frases recriminatórias e estimulantes do amor-próprio, como 'não te envergonhas, imbecil, de sustentares com prejuízo de tua saúde, da tua dignidade e do teu bolso, os Souza-Cruzes, os burrocratas e lesmocratas e quejandos vagabundos? Quando criarás vergonha nessas fuças, palerma?' (Ou outro palavrão porventura ainda mais ofensivo, como estúpido, cretino, atrasado mental, imaturo, reaccionário, estalinista, fascista, burguês, otário, maricas, filho da puta.)"


A revolução biológica e o sistema Waerland


Ele recomenda que "quanto mais ofensiva a expressão usada, maior valor terá a erradicação do vício". Caso não apresente resultados dentro de um mês de intensivo uso do "método", "não haverá mais nada a fazer, senão esperar que um câncer providencial venha liberar o mundo de mais um idiota indigno da vida”.


Roberto chama de "revolução permanente" o caminho aberto pela "alimentação- biológica", "sem drogas de farmácias, imunizado apenas pela consciência esclarecida do que estas significam, e confiante no poder regenerador dos agentes naturais". Para pensar assim, Roberto esteve aos 16 anos praticamente desenganado pelos médicos. Na sua família de sete irmãos, era o mais debilitado: "Ninguém dava nada por mim". A partir dai aderiu ao vegetarianismo, e – afirma – restabeleceu a saúde.


Esta alimentação biológica tem origem no sistema Waerland, um bromatólogo suíço de quem o poeta anarquista editou obras na sua Germinal. A particularidade dessa dieta vegetariana é a recusa de comer peixe – “o pior dos alimentos para a saúde, com maior número de bactérias de putrefacção. Para compensar, nele é usado muito sal, e isso arruina os rins. Por isso as populações ribeirinhas vivem menos". Ele ainda renega, também, alimentar-se de ovos, "menstruação de galinha", carne de aves ou qualquer animal.


No Rio de Janeiro, Roberto é um dos fundadores e consultor da pioneira Cooperativa dos Vegetarianos da Guanabara, que reúne cerca de 6 mil associados. A entidade hoje é autónoma na produção de alimentos – frutas, hortaliças, cereais, leguminosas — fornecidos pela colónia agrícola que mantém nos arredores do Rio de Janeiro, em Papucaia.


É aí que ele costuma almoçar todo dia. Para isso atravessa o Rio de Janeiro de ónibus – Lins-Praça Tiradentes –, tendo nas mãos a inseparável sacolinha onde coloca um suprimento de seus panfletos naturistas, livros de dieta e anarquistas. Nas ruas da cidade seu passo é rápido, o olhar pacífico atravessa o caos urbano, naquilo que ele chama de "sifilização cristã".


Roberto das Neves explica que se tornou anarquista individualista por "uma questão de nascimento, educação, tradição, família, etc." De seus pais herdou o ateísmo. Ainda criança iniciou-se na heresia com as primeiras perguntas sobre a existência de Deus, o que mereceu bons cascudos de sua avó, por não aceitar os dogmas da Igreja. Adolescente, partiu para sabotar os templos católicos espalhando substâncias químicas malcheirosas pelo chão. Hoje, porém, ele não mais afronta os adeptos de outras crenças: "Não podemos impedir que pensem assim. Podemos exigir, no entanto, que sejam coerentes. Um cristão, que se diz cristão, se colocar ao lado dos poderosos e dos ricos — isso é que é de espantar."


Lutando contra o fascismo, contra Salazar, contra...


Ele reconhece que a Igreja hoje tem procurado "se colocar a favor dos humildes, dos pobres e lutar pela redenção humana". Lembra o ano que passou na Revolução Espanhola, quando padres lutavam ao lado de anarquistas nas providas bascas e na Catalunha, contra o fascismo. Diz ele que estes católicos vieram depois ao Brasil e puseram aqui em prática a experiência adquirida no convívio com os anarquistas, o que favoreceu o novo rumo da Igreja neste país.
O poeta libertário, antes de vir ao Brasil, sob pecha de herético sofreu 13 prisões na Portugal salazarista. O refúgio mais próximo era nessa época a Espanha, onde passou 4 anos esparsos e os anarquistas estavam a pique de empreender a maior realização libertária da história (com a autogestão da Revolução Espanhola — 1936-1939). Cada poema seu editado em jornal valia uma ameaça de prisão. Por isso, atravessava a fronteira para não ser pego, até o ponto de saturação, quando Salazar interditou Portugal à sua presença. Como saída, mudou-se para o Brasil, em 1938.


Aqui, continuou na luta contra a ditadura portuguesa, colaborando com nativistas de diversas outras correntes de pensamento: liberais, socialistas, embora com o PC não se desse bem. A desconfiança dos libertários com relação ao Partido Comunista é forte. Não se esqueceram dos massacres de Kronstadt (1921) nem dos da Ucrânia (1920), quando a participação na Revolução Russa se limitou à chancela do partido único; nenhuma organização autónomo de trabalhadores teve mais espaço reconhecido no país da "ditadura do proletariado".


"A Rússia foi um fracasso. Criou-se um capitalismo de Estado, coisa mais abominável que o capitalismo vulgar. Eles esqueceram que sua finalidade era no começo desbaratar a organização burguesa. Tornaram-se um novo imperialismo, que está associado em toda parte com os partidos políticos", acrescenta.


O marxismo mereceu de Roberto das Neves o lançamento com dedicação, pela Germinal, da obra Marxismo, Escola de Ditadores — introdução de sua autoria a Erros e Contradições do Marxismo, do russo Varlan Tcherkesof.


Desancar a "religião marxista", para quem conhece suas nobres origens, parece ser o objectivo de Neves-Techerkesof. Segundo Roberto, "na obra de Karl Marx há que distinguir duas partes; uma, que é boa, mas não é dele; e outra, que é dele, mas não é boa".


Ele afirma que Marx, "além de roubar os principais conceitos de sua obra (mais-valia, etc.) de economistas liberais, socialistas e anarquistas franceses e ingleses — Sísmondi, Victor Consideram, Robert Owen, W. Thompson, Adam Smith, Blanqui, David Hume, Proudhon e Fourier, entre outros —, chamou-os de utopistas. A maioria dessas utopias, no entanto, foi ensaiada em colônias experimentais e falanstérios. Sem a conotação marxista de 'coisa irrealizável, devaneios de loucos sem base na realidade'."


A frieza do marxismo: onde está a ciência?


"É que na Rússia o sonho e a liberdade continuam, desde Lenine, considerados como futilidades ou preconceitos burgueses. Ao devaneio tolerante, libertador e criador da utopia, preferem os marxistas o realismo frio e esterilizante do dogma", diz Roberto das Neves.


O anarquista questiona, por fim, o carácter socialista científico do marxismo, que "jamais submeteu suas teorias ao controle da experiência com o método científico, limitando-se a examinar os dados oficiais, frios e raramente exactos das estatísticas."


Como o marxismo ainda não acabou com a divisão de classes e fortaleceu apenas uma burocracia de elite encastelada no Estado, Roberto conclui afirmando que a obra de Marx é que deve "ser chamada de socialismo utópico — na pior acepção que os marxistas atribuem a esta expressão".


1952, celebração do 369 Congresso Eucarístico no Rio de Janeiro. Patrocinado pelas lojas maçónicas "Germinal" e "Lusitânia Livre", Roberto publica e distribuí o folheto "O Verdadeiro Catecismo", que teve 5 edições. No mesmo estilo de linguagem simples da divulgação católica, com perguntas e respostas, fala de Deus — "Todo-Poderoso, porque é dele que nos vem toda a força" – e aos poucos tenta mostrar a inutilidade da Igreja na experiência religiosa quotidiana, para em seguida atacar a instituição do clero.


"O padre é o maior inimigo de Deus na Terra. Quando Jesus andou nesse mundo, já aqui encontrou igrejas e padres que viviam às expensas dos crentes." E emenda: "Os padres não servem ao povo nem a Deus, mas somente aos poderosos, para manterem jungidos os pobres aos arados dos ricos". Os abusos do clero subserviente ao poder são apontados sem piedade, no bom sentido anarquista de induzir os fiéis a olhar com os próprios olhos para as suas vidas. E, assim, eliminar os intermediários profissionais entre eles e Deus.


A participação do poder maçónico


Para escrever esse panfleto, Roberto inspirou-se nos "ensinamentos de Jesus", e recomenda nele "a bondade, que nos embeleza", a indulgência, gratidão e solidariedade humana. Finda com a afirmação de que "essa é a melhor maneira de amarmos, e servirmos a Deus".


Pergunto-lhe sobre essa intervenção e ele reconhece ter usado "o próprio linguajar deles, contra eles".
Nada disso, portanto, prejudica o ateísmo de Roberto das Neves. Maçom no rito escocês, iniciado na loja portuguesa "Rebeldia", em 28, tendo alcançado grau 25, exilado no Brasil em 1948 ele entrou para a loja "Filantropia e Ordem", do Rio. O nome adotivo que trazia desde sua entrada nos pedreiros-livres, Satã, criou receios entre alguns maçons cariocas, que acreditavam ser aquilo contrário aos princípios da maçonaria.


O patrono da instituição, o Grande Arquitecto Universal, pensavam estes maçons, era Deus, que seria ofendido com o nome adoptivo Satã. Para resolver a questão, reuniu-se "uma comissão de altas entidades maçónicas", que por fim decidiu que a escolha do discípulo um tanto quanto surpreendente não feria o princípio maior da maçonaria, pois "este e Satã ou Lúcifer, o portador da luz, são a mesma entidade".


E ficou ele com o pseudónimo com que passou a assinar artigos satíricos na imprensa anarquista: jornais Acção Directa, do Rio, e A Plebe, de São Paulo. Então chamava-se doutor Satã, pois aproveitou o título obtido na universidade com tese "Os Temperamentos e Suas Manifestações Gráficas".


Roberto grafólogo: é uma das suas facetas. Até hoje ele tem clientes que não admitem empregados sem antes submeter a letra do candidato ao seu exame. Inclusive os noivos das filhas escrevem, e o poeta libertário vê nos rabiscos "o espelho da alma: carácter e personalidade, humor, todas as características pessoais"


Roberto costuma afirmar que os maiores pensadores do anarquismo foram maçons: Kropotkin – "que baseado nos arquivos da organização escreveu sobre a Revolução Francesa" —, Bakunin, Max Stirner, E. Armand, Han Ry-ner, Luisa Michel, Sebastian Faure, Malatesta, Herbert Spencer, Benjamim Tucker, Jean Grave, Proudhon — "co-autor do Manual do Rito Moderno ou francês" – e Leon Tolstói.


Sua ligação com a maçonaria vem das conferências que proferia na Europa e no Brasil em lojas, algumas clandestinas sob ditaduras, a respeito do anarquismo. Embora hoje afastado das reuniões maçónicas, "sem frequentar normalmente", reconhece o poeta que "a humanidade a ela deve muito, por ser um dínamo que a acciona". A instituição dos pedreiros-livres, diz ele, "nos impulsionava, obrigava-nos a pensar, a estudar juntos. Pior seria se não existisse, apesar de seus defeitos".


Socialismo libertário como grande saída


Quanto aos defeitos, Roberto um dia encarou-os de frente e atirou sólidas tijoladas na acomodação da instituição que "representa o desenvolvimento, o poder e a decadência moral da burguesia" sem conservar muito da tradição revolucionária de Liberdade, Igualdade e Fraternidade.


Na ocasião das críticas, chegou a dizer: "A sociedade secreta, que hoje subsiste com o nome de maçonaria, se quiser sobreviver, tem de adoptar um novo objectivo: o socialismo libertário. Só ele concilia os direitos inalienáveis do indivíduo com as soluções colectivas. Se tem que preparar os espíritos para a Anarquia. Uma sociedade sem escravos nem senhores, sem fronteiras nem exércitos, sem Estado nem propriedade de uns em detrimento dos que a trabalham. Uma sociedade em que os indivíduos saibam governar-se dispensando o Estado — em que o governo dos homens seja substituído pela administração das coisas."


Encontra-se dentro dessa polémica suscitada dentro da organização maçónica todo o ateísmo anarquista, que Roberto procura esclarecer. "A maçonaria", prossegue, "fez reviver e popularizou nas sociedades modernas que o universo não tem começo nem fim: está em permanente devir. No universo regido peia lei da evolução permanente, portanto, Deus não tem nada que fazer. Tudo é força da mecânica molecular, do átomo em suas variações, eterna e infinitamente combinadas pelo próprio dinamismo, sem um ordenador, sem força externa."


''Nunca tive simpatia pelas maiorias"


Transportado para o terreno filosófico, político e sociológico, esse princípio da maçonaria teve impulso renovador sobre as instituições vigentes: "Derrubou as monarquias do direito divino, o feudalismo e a Inquisição, tão caros à Religião e a Deus (sinónimo do culto do passado, de tirania, de estagnação e morte)".


A aliança entre o despotismo e a religião, o poder e a mistificação religiosa, a "Espada e a Cruz é de todos os tempos", revela Roberto. "O Estado, ou seja, a Autoridade, a opressão do homem pelo seu semelhante, é. uma injustiça, uma imoralidade, absurdo tão gritante que é necessário que a Religião venha abençoá-lo em nome de Deus para que os homens acatem e submetam o pescoço à canga."


Finaliza o ateu: "Os homens não necessitam da hipótese Deus para meditar, mover-se, comer, beber, defecar, amar, praticar uma boa acção, sentir as emoções do belo e do elevado, viver. Deus não é só indiferente perante as volições de cada um, mas repugna à inteligência de muitos. A minha, jamais, desde a infância, pôde concebê-lo."


Faço-lhe perguntas procurando uma reconciliação, que os anos avançados talvez possam trazer, com a espiritualidade:


"Reconhece que essa dimensão espiritual faz parte da vida humana?", digo.


"É um ponto de vista diferente do nosso. (...) Não tenho motivo algum para abjurar dos meus pontos de vista. Sou isso desde os 10 anos. Eu no fundo sou individualista, embora aceite muitas vezes o comunismo libertário, que é menos perigoso do que o outro comunismo à maneira russa. Isso quando não se está preparado ainda para uma coisa de maior expressão em bases individualistas, o que supõe uma mentalidade que a humanidade não atingiu."


"Diante das correntes de esquerda hoje em actividade, você não fica marginalizado?", interrogo.


Com calma vem a resposta: "Eu sempre me considerei membro da minoria. Nunca tive simpatia pela maioria, tão habituado estou a ver que a maioria é constituída por imbecis, por analfabetos, por hipócritas."


Indago ainda se ele vê alguma virtude na revolta.


Segundo Roberto das Neves, "a revolta é indispensável. Se não há revolta, o mundo continua como está. É preciso, porém, saber aplicar a revolta."


Quero saber se ele é adepto do pacifismo.


"Sim. De vez em quando, diante de um hipócrita ou de um covarde não recorro à violência das armas. Procuro a arma da sátira."


Faço mais uma pergunta a respeito da revolta, se ela não pode enfim amargurar a vida de uma pessoa.


Ele confirma. Explica: "Mas o mundo não caminha sem amargura, sem sofrimento, infelizmente."


Roberto, todavia, não deixa de fazer com gosto o seu trabalho. Mantém intacto o sentido ético no relacionamento humano, vê-se nele alguém afável, atencioso, de vez em quando gozador, porém nunca odiento. Várias vezes interrompe a entrevista para fazer-me perguntas pessoais, e se mostra interessado nas respostas.


Provado: a falência das instituições


As ideias anarquistas nele já estão amadurecidas, frutos de muitas reflexões, estudo e inspiração, pois se trata de um poeta. Sua musa inspiradora, pode-se dizer, é a anarquia. É ela que lhe abre os olhos para as injustiças e o coração para as alegrias da vida. Anteriormente, a questão social aparecia em seus livros em primeiro plano. Agora, no que editou, transparece mais a preocupação com o naturismo, se bem que no balanço final, quando ele formula a noção de "sifilização cristã", dá no mesmo. Todas as instituições ocidentais cabem dentro da deterioração interna por ele apontada.


Falta, sobretudo, na sociedade de hoje, solidariedade, livre acordo mútuo nas organizações – ele dá a entender —, e sobra autoridade, mando sobre os semelhantes do homem. No casamento, na questão da mulher, na criação das crianças, a contaminação do poder é abusiva. Ao mesmo tempo Roberto atesta a falência das instituições: na mulher ou no marido que traem a relação matrimonial, no filho que cresce revoltado e na mulher que aproveita as mínimas brechas para improvisar uma desforra dos anos de subjugação.


Provoco-o um pouco mais em busca de alguma fé recôndita. Insisto em obter dele uma confissão qualquer de espiritualidade. Toco no momento Nova Era e questiono as afinidades que tenha com suas ideias.


"Muitas, Estou inteiramente de acordo. Eles recusam a prestação de serviço militar: não querem matar pessoas de quem não tenham razão de queixa. Nem morrer."


"Mas isso não tem um fundo místico-cristão?", digo só para pôr lenha na fogueira.


"Nem todos", afirma ele. "E, ainda que tenham, a gente perdoa."


"Segundo a Nova Era, a humanidade, a superar o carma que tem a cumprir, virá com mentalidade mais evoluída", comento.



Roberto espera isso: "Não afirmo que virá, mas espero que venha."


Ele tem esperanças "de que a humanidade reconheça que é estúpida, que muitas ações que vem tomando não se justificam. Como, por exemplo, matar e morrer, querer o salvador, o infalível, o proprietário único da verdade. A civilização moderna, aquilo que chamo de sifilização cristã..."


Aproxima-se o meio-dia: hora de irmos até o centro de ónibus, almoçar no vegetariano da cooperativa. O Rio está nublado.

Poesias de Roberto das Neves




Germinal

Poesia de Roberto das Neves, inserida no seu livro "Assim Cantava um Cidadão do Mundo", publicado em 1952 pela editora Germinal. O poema é dedicado a José Oiticica, o sábio filólogo, extraordinário poeta e anarquista sem mácula.


Somos o Povo útil e forte,
a massa humil dos produtores
Ao vento, à chuva, ate à morte,
vimos, no mundo, hercúleo, forte,
nutrindo, há sec'los, os senhores.

Tudo o que existe sobre a Terra
— templos, quartéis, fábricas, paços,
armas de paz e armas de guerra...—
tudo quanto há por sobre a Terra
deve-se a nós, aos nossos braços.

Tudo isto eu faço, o Proletário:
aviões pra abrir novos espaços,
o livro, o pão, o vestuário...
O Deus sou eu, o Proletário.
Rende, burguês, culto a meus braços!

Sou quem produz, sou a Canalha,
sou a Ralé vil e precita.
Titã das sombras da fornalha,
tenho uma história, a da Canalha,
em negro livro, a sangue escrita.

2
E — vede bem! — sendo eu assim,
o herói, o mártir, que produz,
teem-me horror, fogem de mim,
sou desprezado e vivo assim,
faminto e roto, a ansiar a luz.

Eterno poeta do Trabalho,
componho a suar hinos à Vida,
visão da mina, Atlas do Malho.
Eu faço o pão, rei do Trabalho
e, no meu lar, não há comida.

Sou o Criador, forte, espectral.
Plebe, Ralé — são o meu nome.
Sustento o orbe terrenal
— e no meu lar, reina, espectral,
a imperatriz cruel, a Fome.

Aos reis o luxo dou e o fausto.
Sou o operário da Matéria,
sempre fecundo e nunca exausto.
E, enquanto os reis vivem no fausto
— vegeto, escravo da Miséria.

Somos os párias, enjeitados.
A Sociedade espoliou-nos.
Fomos roubados e escorraçados.
Ah, mas, um dia, os enjeitados
ruirão altar's, dogmas e tronos !

Sou o Povo, a vítima das leis
dos faraós, Césares e Gracos.
Ah, mas, um dia, cairão reis,
e eu surgirei, belo e sem leis,
viril, revel, novo Spartacus!

3
E, então, o mundo, sem tiranos
— perdoo-vos, reis; burguês, não tremas!
será, após tantos mil anos,
feliz, alfim, sem os tiranos,
feliz e livre, sem algemas.

Sonhando, a amar, na asa do Ideal,
vamos a voar pra a Revolução,
que, num amplexo fraternal,
os povos há-de unir no ideal
da Paz, do Amor e do Perdão.

E, redimida a humanidade,
ex-rico, irmão, meu ex-senhor,
ao brando sol da Liberdade,
cantando um hino à Humanidade,
tu bendirás o Produtor!

Prisão da Esquadra Policial do Forte do Castelo, em Lisboa, 1928.




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Altitudes


Poesia de Roberto das Neves, inserida no seu livro "Assim Cantava um Cidadão do Mundo", publicado em 1952 pela editora Germinal. O poema é dedicado aos seus amigos da Sociedade Naturista


Já que a estupidez humana
só causa sangrentas brigas,
abandona a vida urbana
das malfazejas formigas.
Foge à cidade maldita
e sobe aos mais altos montes,
junto à cúpola infinita,
dos mais vastos horizontes.

Que deslumbrantes grinaldas
das estações e das flores:
Primaveras de esmeraldas,
Verões de doces calores!
Urzes, junquilhos, giestas,
beijadas pelo galerno,
preparam as brancas festas
silenciosas do Inverno.

Sozinho, no pico agreste,
em face da imensidade,
sob a abóbada celeste,
ouve lição de humildade.
O orgulho, que te aniquila,
domina-o, sereno e forte,
ó homem, nado da argila,
à qual regressas na morte!

E na lição recebida
convido-te a concentrar-te,
para aprenderes que a Vida
é só Bondade e só Arte.
Eleva ao mais alto cume
tua alma e teu coração.
Abrasa-te, homem, no lume
da Suprema Aspiração!




Da boa e da má reputação

(Carta sob a forma de poema de Roberto das Neves, inserida no seu livro "Assim Cantava um Cidadão do Mundo", publicado em 1952 pela editora Germinal. A carta é dirigida a Vasco da Fonseca)

Leio na carta que me escreves,
cheio de dor e aflição:
"Sou alvo, meu caro Neves,
de uma torpe campanha de difamação...”
Não sublinho estas palavras,
com que a tua carta lavras,
para pôr em relevo um pleonasmo.
Quero apenas mostrar-te aqui o pasmo,
que sinto ante o conceito do valor,
que tu, um poeta, um pensador,
atribuis à boa e má reputação.
Não!
Não estou de acordo contigo,
meu camarada e amigo.
A má reputação,
longe de ser um flagício,
é, ao contrário, um benefício.
É uma armadura e um disfarce,
detrás dos quais um qualquer
pode tudo fazer,
inclusive dar-se
ao requinte de um bom comportamento,
ou daquilo que um vulgar mortal
tem como tal,
em seu pobre julgamento.
Mas ela nos oferece inda a vantagem
de afugentar de nós a malandragem
dos Catões,
dos Acácíos,
dos Calinos,
isto é, dos maganões,
dos pascácios,
dos cretinos,
dos moralistas
— todo o rebanho, enfim, dos conformistas,
coluna vertebral do mundo, é exato,
mas que tornam o mundo
imundo,
caricato
e chato.

Lembro-te apenas Sócrates e Cristo.
Ninguém houve que, pela sua acção,
merecesse melhor reputação.
E que lhes sucedeu? Pois, isto:
Presos e acusados
dos mais feios pecados,
foram condenados,
por imoral conduta:
Sócrates, a beber cicuta,
e Jesus,
de impropérios coberto,
a agonizar na cruz,
entre dois terríveis ratoneiros
— não tão terríveis, por certo,
quanto os nossos pacíficos banqueiros

Compreenderás, agora, meu amigo,
que, para uma pessoa inteligente,
não pode haver pior castigo,
mais duro e mais inclemente,
que o duma boa reputação,
atribuída pelos donos de armazém,
que envenenam e nos roubam no peso,
e pelos filhos-da-mãe,
que nos levam preso.
Tenho por isso a opinião
de que devemos sempre fomentar,
à nossa volta,
como prudente escolta,
uma salutar
atmosfera de má reputação,
que permita manter-nos sempre sós,
intactamente nós,
distantes do louvor das multidões,
dos imbecis,
dos vis,
dos Catões.

Desilude-te, meu caro:
enquanto houver dinheiro
e houver superstição,
hão-de ser sempre o casto padre Amaro,
o pobre do banqueiro,
o escrupuloso quitandeiro
e o vegetariano do açougueiro
— quem há-de desfrutar
boa reputação.
Contentemo-nos com estar,
sinceramente,
filosoficamente,
de acordo connosco mesmos,
embora contra a opinião
dos que querem acender de novo a Inquisição,
a fim de transformar,
como de onagros,
o nosso corpo de herejes em torresmos,
ou, melhor, meu caro Vasco
(visto que os herejes, como nós, são sempre magros)
— em churrasco.
Por isso me agito,
de nojo vomito,
faço um manguito
e grito,
cheio da mais cristã indignação:
— Livrem-me da boa reputação
o meu simpático e audaz
camarada Satanás
e o maganão
e muitíssimo cristão
do Catão!

Rio de Janeiro, 1952.




Poemas de Satan

(Poesias de Roberto das Neves, inserida no seu livro "Assim Cantava um Cidadão do Mundo", publicado em 1952 pela editora Germinal )

Satan é o espírito de revolta contra a fé, o ascetismo e a escolástica. É um apelo à Natureza desprezada pelo pensamento cristão e à Vontade esmagada pela Autoridade. É a Ciência, a Natureza, o espírito do Livre-Exame e a Filosofia ligados contra o Obscurantismo.
Emile Faguet — Historia da Filosofia




Aos que me ensinaram a amar a Satan, instilando-me no espírito a Dúvida heróica e fecundante:
A meu falecido pai, Manuel Vicente Pedroso Neves, que numa época e num meio dominados pelo fanatismo teve a coragem de proclamar-se ateu e como ateu viver e morrer;
a meu velho professor primário, António Antunes Amaro;
a Tomaz da Fonseca, o glorioso autor dos "Sermões da Montanha", que, com oitenta anos, continua sendo o motor hereje e o maior crente de Portugal;
e ao meu velho, bondoso e erudito professor de historia das religiões na Universidade de Coimbra, Dr. M. Goncalves Cerejeira (actual Cardeal-Patriarca de Lisboa), o maior ateu de Portugal.






QUERO SER COMO TU, SATAN!
A Jaime Brasil


É fria a noite. Ilune o céu. E o vento
uiva na treva como hidrófobo animal.
De luz nimbado surge, em um deslumbramento,
um vulto do Astral.
Desenha-se, num fundo azúleo, tenuemente,
uma linda visão de asas esculturais.
Ferem a escuridão dois raios, de-repente,
como flâmeos punhais.
O duende crava em mim sua pupila acesa
e longo tempo fixa o meu olhar. Alfim,
aquela aparição, de cujo olhar sou presa,
exclama: — Vem a mim!
— Quem és tu, ó visão que encanta e me fascina?
— inquiro, com assombro, a estranha aparição.
— Sou o Portador da Luz, a Estrela Matutina,
a alva Luz da Razão!
— Ah, como és belo! — digo ao Anjo, deslumbrado
pela sua beleza helénica, pagã.
Como te chamas tu? — Chamam-me o Reprovado,
o Anjo Revel, Satan!
— Anjo, há no teu olhar tanta melancolia!...
— Sofro — e turbou-se, então, o olhar do Anjo Revel —
por todos que, como eu, sofrem a tirania
do velho Deus cruel!
— Porque és o Reprovado e é réprobo o teu nome?
— Deus, de quem sou irmão, quis ser mais do que eu.
Revoltei-me. Jeová venceu-me, subjugou-me
— e expulsou-me do Céu.
E eu venho, desde então, pelo Universo, errante,
de Eloim afrontando o infinito rancor,
aos humanos pregando a insurreição perante
o jugo do Senhor!
— Quero ser como tu, Satan, ó Revoltado!
— Revolta-te e serás formoso aos olhos teus!
Sê livre, dá-te, rasga a Lei, ama o Pecado
— e amaldiçoa Deus!



CARTA AO DEUS DAS IGREJAS


(Endereço):
Ao: Padre Eterno, Deus, Criador e não-criado;
pirotécnico ilustre, excelso e decantado;
senhor dum poderio intérmino, profundo.
Detrás das Nuvens — Céu — Império do Outro Mundo.


(Texto):
Preclaro Autor de tudo o que se move
na imensurável amplidão dos céus,
ouve o que vou dizer-te, ó velho Zeus;
escuta o que te digo, antigo Jove:
A humanidade, que, por largos anos,
aos pés se te rojou, apavorada,
começa a compreender toda a farsada
e a gargalhar, ó Deus, de teus arcanos.
O raio, que tu lá de cima lanças,
que outrora muita gente estarreceu,
ó hábil pirotécnico do Céu,
só hoje aterra as tímidas crianças.
Ó Eterno, acalma o génio rabujento!
Mais que tu pode a herética Ciência.
Reduziu-te Franklin à impotência
com infernal, luciferino invento.
Por isso é que, hoje, à mirra e ao alecrim,
bentinhos, orações, magnificates,
até o crente (é bom, Deus, que o constates!)
prefere o pára-raios de Franklin.
Não me assustam, ó Júpiter tonante,
não me amedrontam, Júpiter superno,
as descrições mais tétricas do Inferno,
feitas por um masmarro ou pelo Dante.
Admiro Belzebú, o. ente primeiro
contra o teu despotismo revoltado.
Rio do teu poder ilimitado,
com João Most, com Voltaire e com Junqueira.
Do Infinito os zabumbas colossais
podes sovar, ó Deus, com toda raiva,
e mijar sobre mim chuva e saraiva,
que eu rir-me-ei, sem temor, ainda mais.
Deus, tranca-me os portões do Paraíso!
Chovam excomunhões sobre o blasfemo!
Jeová, as tuas cóleras não temo.
Tuas fúrias, ó Deus, causam-me riso.
Castiga, ó Padre-Eterno, o filho ingrato,
o filho heresiarca, o filho ateu!
Sobre mim desça a maldição do céu!
Às chamas infernais um candidato.
Coimbra, 1925.


Nota — Esta carta foi lançada numa caixa do Correio, em Coimbra (Portugal), no dia 3 de Junho de 1925, pelo autor, que nunca recebeu resposta. No reverso do sobrescrito lia-se:


De:
Um candidato às infernais chamas cruéis,
que em ser assíduo timbra
no número 26 da rua das Padeiras.
Terra — Coimbra.

«O Diário do Dr. Satan: comentários subversivos às escorrências quotidianas da sifilização cristã » (excerto do livro de Roberto das Neves)


"Antes insultado em esperanto — língua da Pátria Planetária, da Democracia, da Fraternidade — do que louvado em qualquer idioma nacional — Instrumento de divisão entre os homens, de patriotismo, de nacionalismo, de fascismo !" (Roberto das Neves)


O idioma, instrumento imperialista

(texto de Roberto das Neves inserida no seu livro "O Diário do Dr. Satan: comentários subversivos às escorrências quotidianas da sifilização cristã", publicado em 1954 pela ediotra Germinal. A carta é dirigida a Vasco da Fonseca)

"Os representantes russos da Checoslováquia desenvolvem, com a colaboração das autoridades checas, intensa campanha para popularizar o idioma russo, tornando o seu aprendizado obrigatório nas escolas. O professor Travnicek declarou que o russo, "língua do progresso e da paz", é o sucessor do esperanto como língua mundial" — noticiam de Praga.

O idioma foi sempre, através dos tempos, um instrumento psicológico de dominação imperialista. Foi por meio do latim que os romanos sujeitaram o mundo, como antes sucedera com o grego e com outras línguas, e como hoje ocorre com o inglês, arma de que se utilizam os imperialistas anglo-norte-americanos para manterem a hegemonia comercial e espiritual sobre as nações.
Depois da quinta-coluna das revistas, dos jornais e dos livros em inglês, com a propaganda de seus produtos e de seus métodos políticos, vem a conquista dos mercados e das almas. O nascente imperialismo russo não podia deixar de seguir o mesmo processo histórico. E os povos são tão idiotas, que fazem o jogo dos imperialistas, aprendendo e adoptando o ópio da sua língua. Se quando um anafado negociante ianque, recém-chegado ao Brasil, ou um rechonchudo burocrata soviético, acabando de saltar na Checoslováquia, se dirigem à primeira pessoa que encontram e lhe formulam qualquer pedido em inglês ou russo, o interpelado lhes respondesse: "Olha, velhinho, isto aqui não é a América do Norte (ou a Rússia). Se queres que te responda, fala-me em Esperanto, idioma que não pertence exclusivamente a um povo, mas a todos!" — as coisas correriam de outro modo. Os imperialistas ver-se-iam forçados, pelo menos, a mudar de táctica.

Declaremos, pois, a greve das línguas nacionais e pratiquemos o Esperanto, a mais terrível das armas secretas contra o imperialismo! Que o nosso lema seja: "Antes insultado em esperanto — língua da Pátria Planetária, da Democracia, da Fraternidade — do que louvado em qualquer idioma nacional — Instrumento de divisão entre os homens, de patriotismo, de nacionalismo, de fascismo !"