18.8.07

Solidariedade para com os activistas anti-OGM que ceifaram um hectare de milho transgénico em Silves

Ao contrário dos incautos apoiantes da agricultura química e transgénica ( que mal conhecem o que é a «sociedade do risco» e da necessidade de defender o princípio da precaução no que toca aos avanços tecnológicos) e dos complacentes com a natureza «geneticamente manipulada», já para não falar dos que calam e consentem e dos «legalistas» que não conseguem pensar pela sua própria cabeça e que desconhecem o valor da consciência e acção crítica de cada ser humano, o deputado europeu do Bloco de Esquerda Miguel Portas acaba de manifestar a sua solidariedade para com o acto de desobediência civil não-violento ( defendido por Gandhi, Martin Luther King, e muitos outros) realizado numa herdade de Silves por um conjunto de activistas anti-OGM que ceifaram um hectare de milho tóxico (geneticamente modificado e cujo pólen pode contaminar as culturas circunvizinhas) de um total de 51 hectares de que a exploração agrícola é constituída.

Reproduzimos do seu blogue o texto seguinte com o título Eufémia desobediente.

www.miguelportas.net/blog/?p=108


Está a dar que falar o primeiro acto de desobediência civil ecológica realizada em Portugal. Ainda bem e gostaria de declarar a minha simpatia com o gesto.
Distancio-me, assim, das respeitáveis opiniões da Quercus e da Almargem - ambas com trabalho mais que meritório - que criticaram o gesto, concordando embora com os seus objectivos. Tais posições reflectem, acima de tudo, uma cultura de prudência ante a desobediência civil que penso ser injustificada e tradicionalista. Eis o meu argumento:

1. Com este gesto, o Movimento Eufémia Verde conseguiu alertar a opinião pública para um facto que lhe era desconhecido: que o Algarve - com o voto favorável da sua Associação de Municípios - já não é “uma região livre de transgénicos”. Podia ter encontrado outro modo? Talvez. Mas digam-me qual, visto que foi este que, em concreto, soltou a evidência. Até hoje o debate sobre os transgénicos em Portugal não tinha passado do parlamento e de opiniões escritas nos jornais. A partir de hoje pode começar a ser diferente.

2. O movimento não fez uma acção a coberto da noite e do anonimato. Assumiu-se à luz do dia e com porta-voz. Claramente, a sua intenção não foi de ataque à propriedade do agricultor - “nada nos move contra ele” - mas de afirmar, através de um gesto espectacular, a defesa do “princípio da precaução”.

3. Dissociar-me-ia deste tipo de protesto caso o Movimento Eufémia Verde fosse uma espécie de “braço militar” que se pusesse a queimar propriedades com milho transgénico onde quer que elas se encontrassem. Não por qualquer motivo de ordem moralista. Mas porque atrasaria a formação de uma corrente de opinião maioritária quanto ao princípio que referi. Pelo contrário, simpatizo com movimentos que sejam capazes de fazer saltar para o debate público os “pontos negros” da nossa civilização ínovando nas acções, se necessário nos limites da lei.

4. O que surge como condenável é a queima de 1 hectare de milho transgénico. Lamento dizê-lo, mas esse aspecto deve ser colocado na balança do ganho social que o gesto induziu. Quando uma população interrompe uma estrada ou uma linha de combóio por uma causa que considera justa, ninguém se lembra de condenar. Já nos habituámos a discutior se ela tem ou não razão. Quanto ao mais, o assunto vai para os tribunais e eles que decidam. Quem faz este tipo de acções também mede esse aspecto. A nossa sociedade tem que aprender a conviver com novas formas de conflitualidade não-violenta.

O Diário de Miguel Torga (excertos) com um breve relato da sua prisão


Eis alguns excertos da prosa diarística de Miguel Torga:


Coimbra, 16 de Junho de 1947 – Sobretudo, não desesperar. Não cair no ódio, nem na renúncia. Ser homem no meio de carneiros, ter lógica no meio de sofismas, amar o povo no meio da retórica.


Coimbra, 5 de Abril de 1948 – Creio que não é preciso. Em todo o caso, fica aqui a declaração.
O que eu fui sempre, o que eu sou, e o que serei, é um artista, um homem e um revolucionário. Na medida em que sou artista, quero um mundo onde a beleza seja o vértice da pirâmide. Na medida em que sou homem, quero que nesse mundo os indivíduos sejam livres e conscientes. E na medida em que sou revolucionário, quero que a revolução traga à tona as grandes massas, e que nunca acabe de percorrer o seu caminho perpétuo, sem estratificações e sem dogmas.




Gerês, 17 de Agosto de 1958 – Sou, na verdade, um geófago insaciável, necessitado diariamente de alguns quilómetros de nutrição. Devoro planícies como se engolisse bolachas de água e sal, e atiro-me às serranias como à broa da infância. É fisiológico, isto. Comer terra é uma prática velha do homem. Antes que ela o mastigue, vai-a mastigando ele. O mal, no meu caso particular, é que exagero. Empanturro-me de horizontes e de montanhas, e quase que me sinto depois uma província suplementar de Portugal. Uma província ainda mais pobre do que as outras, que apenas produz uns magros e tristes versos…


Coimbra, 15 de Outubro de 1963 – Quase a seguir um ao outro, dois fanatismos de pólos opostos a baterem-me à porta. Combati-os com igual denodo, embora o de raiz liberal arregalasse os olhos de espanto à medida que se via contrariado. Não era eu habitante da margem esquerda do rio das ideias? Que significava, pois, semelhante reacção? Isto apenas: a impossibilidade que sempre tive de aceitar como bom do lado de cá o que reprovo do lado de lá. Acredito em certos princípios, mas sem a cegueira dos iluminados. No auge da maior paixão, a lucidez corta-me as asas. E caio envergonhado dos pínacros da certeza no raso chão da dúvida. Daí a minha real incapacidade de adesão a igrejas de qualquer natureza. Saí da religiosa em que fui criado e da literária em que entrei um dia, por motivos idênticos: faltava-me o ar naqueles fechados ambientes de ortodoxia. Na altura, tentei justificar logicamente o meu procedimento. Mas as razões que se dão para certos actos é o que deles menos importa. Abandonei as duas confrarias, e nunca mais entrei em nenhuma. Isto, sim, diz tudo. Significa que o meu espírito, embora sedento de absoluto, como sempre o conheci, se recusa encontrá-lo em qualquer prisão dogmática, e porfia em descobri-lo no descampado inquieto da liberdade crítica.. .

S. Martinho de Anta, 23 de Dezembro de 1982 – Cá estou mais uma vez cingido à minha natureza profunda. Vestido como qualquer camponês e a sentir-me bem dentro desta pele terrosa, cavo o quintal, arranco silvas, podo roseiras, racho lenha. E converso com gente do meu agro que me vem visitar ou consultar, gente que nunca me leu, nem faz ideia do que é ser poeta, que fala de trivialidades e quer ouvir respostas triviais. Alimento como todo o meu ser essas conversas intermináveis, feitas de tudo e de nada, e quando elas acabam retomo a enxada de boa consciência, na paz de quem compreendeu e foi compreendido. Sabe bem compartilhar da condição comum. Lá em baixo sou uma ficção entre ficções; aqui sou uma criatura entre criaturas.




Passagem pelo Cárcere ( in O Quinto Dia da Criação do Mundo, Coimbra, 1974)

(Nota: Torga foi preso pela PIDE em Novembro de 1939 em Leiria e levadomais tarde para o Aljube de Lisboa)

Entregue na sede da PIDE, horas depois só por dentro continuava a ser gente. Por fora, fiquei reduzido a uma cara fotografa de todos os ângulos lombrosianos, a umas mãos esborratadas que deixavam impressões identificadoras numa ficha, a um nome sem senhoria e sem título, a um monte de ossos que o arbítrio alheio fazia mover.

- Volta a cara…Espalma agora aqui a pata…Levanta-te…

Conhecia já de nome, até bem demais, a casa, que uma legenda negra celebrava. Contavam-se por toda a parte horrores dos suplícios a que eram submetidas nos cubículos do sótão – os famigerados «moinhos» - as vítimas renitentes à confissão. Dias e noites a fio, de pé, sem dormir, ou, mal fechavam os olhos, acordadas a cachação pelos «macaquinhos», os guardas que a rendição frequente mantinha sempre em forma. Havia casos de alucinação por esgotamento, como o de um operário que cuidou ver a mulher violada e o filho único estrangulado e ia matando a sentinela com o escarrador de ferro fundido a que lançava mão. Mas, sem mesmo subir a essas celas de tortura, qualquer consciência livre encontrava nos rés-do-chão razões de sobra para se envergonhar da existência legal no mundo de semelhantes infernos de aviltamento. Mais do que as sevícias sofridas e o seu destino ali decidido, importava o massacre da personalidade de cada condenado, a perdição da sua alma tentada de todas as maneiras. De uma criatura digna que dava entrada no covil saía muitas vezes, dias, semanas ou meses depois, um trânsfuga, um traidor, um covarde – um ser psicológica, quando não fisicamente, desfigurado, que a si próprio se desconhecia.

(…)

- És então escritor?
- Sou.
- E poeta também, pelos vistos…
- Também.
- Um tipo formidável! Médico, escritor, poeta…Vais longe!
- Hei-de ir até onde puder.
Tinha a impressão de que aquele cinismo me escorria pelo corpo como uma baba.
- Muito me contas! E queres então fazer a revolução social?
- Quero que me deixe em paz.
- Deixo. Mas antes vais responder a umas perguntinhas…
- Não tenho nada a acrescentar às declarações que já fiz.
- Tens. Ora pensa lá bem …
- Está pensado.
- A sério?
- A sério.
- Ouve: eu podia pôr-te aí a falar como um papagaio. Era só dar-te corda. Mas não vale a pena. Temos muito tempo. Fica para mais tarde…Verás que daqui a alguns diass mudas de ideias…
- Não mudo.
- Mudas, mudas…
Sem táctica elaborada para enfrentar a nova situação e ferido nas mais íntimas veras do amor próprio, reagia em bloco, maciçamente, com a dureza das minhas fragas.
- Tu parece que tens fumaças de valentão! Sossega, que eu tiro-as…
- Não tira.
Ainda fez um gesto. Mas deteve-se, sorriu escarninhamente, e chamou por um subalterno.
- Este segue também…

( extracto de O Quinto Dia da Criação do Mundo, Coimbra, 1974)

Estudo social do Portugal de 1871. E também de 2007… - acrescentámos nós!

( excerto do texto de apresentação de Uma Campanha Alegre, de Eça de Queirós)

Leitor de bom senso, que abres curiosamente a primeira página deste livrinho, sabe, leitor celibatário ou casado, proprietário ou produtor, conservador ou revolucionário, velho patuleia ou legitimista hostil, que foi para ti que ele foi escrito – se tens bom senso!

E a ideia de te dar assim todos os meses, enquanto quiserdes, cem páginas irónicas, alegres e justas, nasceu no dia em que pudemos descobrir, através da ilusão das aparências, algumas realidades do nosso tempo.

Aproxima-te um pouco de nós, e vê.

O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Todo o viver espiritual, intelectual, parado. O tédio invadiu as almas. A mocidade arrasta-se, envelhecida, das mesas das secretárias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce… O comércio definha. A indústria enfraquece. O salário diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.
Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária explora o aluguel. A agiotagem explora o juro.
De resto a ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. O número de escolas só por si é dramático. O professor tornou-se um empregado de eleições. A população dos campos, arruinada, vivendo em casebres ignóbeis, sustentando-se de sardinha e de ervas, trabalhando só para o imposto por meio de uma agricultura decadente, leva uma vida de misérias, entrecortada de penhoras. A intriga política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do País. Apenas a devoção perturba o silêncio da opinião, com padre-nossos maquinais.
Não é uma existência, é uma expiação.

(…)

Nós não quisemos ser cúmplices na indiferença universal. E aqui começamos, sem azedume e sem cólera, a apontar dia por dia o que poderíamos chamar – o progresso da decadência. Devíamos fazê-lo com a indignação amarga de panfletários? Com a serenidade experimental de críticos? Com a Jovialidade fina de humoristas?
Não é verdade, leitor de bom senso, que neste momento histórico só há lugar para o humorismo? Esta decadência tornou-se um hábito, quase um bem-estar, para muitos uma indústria. Parlamentos, ministros, eclesiásticos, políticos, exploradores, estão de pedra e cal na corrupção

(…)

Preferias que fizéssemos um jornal político, com todas as suas inépcias e todas as suas calúnias, vasto logradouro de ideias triviais, que desmaiam de fadiga entre as mãos dos tipógrafos?

(…) Aqui estamos pois diante de ti, mundo oficial, constitucional, burguês, doutrinário e grave!
Não sabemos se a mão que vamos abrir está ou não cheia de verdades. Sabemos que está cheia de negativas.

Sobre a educação das raparigas em Portugal ( texto de Eça de Queirós)

A valia de uma geração depende da educação que recebeu das mães. O homem é «profundamente filho da mulher», disse Michelet. Sobretudo pela educação. Na criança, como num mármore branco, a mãe grava; - mais tarde os livros, os costumes, a sociedade só conseguem escrever As palavras escritas podem apagar-se, não se alteram as palavras gravadas. A educação dos primeiro anos, a mais dominante e a que mais penetra, é feita pela mãe: os grandes princípios, religião, amor do trabalho, amor do dever, obediência, honestidade, bondade, é ela que lhos deposita na alma. O pai, homem de trabalho e de actividade exterior, mais longe do filho, impõe-lhe menos a sua feição; é menos camarada e menos confidente. A criança está assim entre as mãos da mãe como uma matéria transformável de que se pode fazer – um herói ou um pulha.
Diz-me a mãe que tiveste – dir-te-ei o destino que terás.

A acção de uma geração é a expansão pública do temperamento das mães. A geração burguesa e plebeia de 1789 a 93, em França, foi livre, sensível e humana –porque as mães que a conceberam tinham chorado e pensado sobre as páginas de Rousseau.
A geração de 1830, gerada durante o primeiro império – foi nervosa, idealista, romântica, porque as mães tinham vivido nas emoções heróicas das guerras, na contemplação das fortunas maravilhosas.
Se a geração de 1851, em Portugal, foi mais forte e original do que a nossa – é porque as mães, de onde ela saiu, tinham sido as raparigas vivamente sacudidas pelos tempos dramáticos das lutas civis.

É, pois, superiormente interessante saber o que são hoje, em 1872, estas gentis raparigas de 15 a 20 anos de quem nascerá, para bem ou para mal, a geração portuguesa de 1893. Assim poderemos prever o que elas serão mais tarde como mães, como educadoras.
Que elas nos perdoem, essas gentis meninas, se a nossa pena nem sempre for glorificadora como um soneto de Petrarca: mas a tinta moderna sai do poço da Verdade. O madrigal ficou para sempre suspirando esterilmente sobre a lombada dos livros de Curvo Semedo, o pastoril desembargador; não se atreve a pôr o seu pé florido nestes caminhos revoltos da vida presente.Está tão longe de nós como os pastores vestidos de seda, apoiados a bordões de cristal. Hoje os pastores são rudes miseráveis, cobertos de farrapos. Não suspiram, em versos sonoros, as meiguices a Clóris: pedem mais pão aos patrões!
O madrigal é triste como uma flor de laranjeira de papel, desbotada, atirada para os tão. Não há nada como belas verdades, sadias e robustas, frescas moças!

A menina solteira! Vejamos o tipo geral de Lisboa. É um ser magrito, pálido, metido dentro de um vestido de grande puff, com um penteado laborioso e espesso, e movendo os passinhos numa tal fadiga, que mal se compreende como poderá jamais chegar ao alto do Chiado e da vida.
O primeiro sinal saliente é a anemia. Taine diz, pintando o sólido vigor inglês – que o dever essencial de uma menina é ter saúde…A saúde é o esplendor físio da inocência. Mens sana in corpore sano. Uma pele fresca e lisa, músculos que jogam livremente, busto direito, beiços vermelhos –indicam juízo forte, consciência recta, um sentir puro. A palidez, as olheiras, o peito deprimido, o ar murcho – revelam um ser devastado por aetites e sensibilidades mórbidas. Magrinhas, enfezadas, sem sangue, sem carne, sem força vital – umas padecem de nervos, outras de estômago, outras do peito, e todas da clorose que ataca os seres privados do sol.

Em primeiro lugar não respiram. Os seus dias são passados na preguiça de um sofá, com as janelas fechadas; - ou percorrendo num passinho derreadp a Baixa e a sua poeira. Portanto, falta de ar puro, são, restaurador. O ar da Baixa corrompe o sangue; e o ar das salas, resguardadas por cortinas ou alumiadas a gás, não tem oxigénio e portanto não alimenta.

Depois, não fazem exercício. Uma inglesa tem por dever moral, como a oração, o passeio – o largo passeio, bem marchado durante duas horas, sem preocupação «janota», todo de higiene.Aqui, as que andam a pé, depois de ir de uma loja na Rua do Ouro a uma igreja no Loreto, arquejam e recolhem à pressa no ónibus. Algumas mesmo não sabem andar; escorregam, saltiram, oscilam. Não dá tanta ideia da constância de carácter, como a firmeza do caminhar. Uma alemã, uma inglesa, anda como pensa – direita e certa. As nossas raparigas, constantemente sentadas e aninhadas, quando têm de se pôr a pé e de marchar, gingam e rolam. Além disso, o hábito do sofá, do recosto e da almofada – acostuma às posições lânguidas; cabeça errante, braços amolecidos, corpo abandonado. Uma inglesa nunca toma, por pudor, estas atitudes. São atitudes de serralho ou de pomba amorosa. Uma menina está direita e firme. É como na pintura e na estatuária se representa sempre a inocência. Deterioração pelo doce começa aos quatro anos. O sangue alimentado a massa, ovos, natas, dá

Depois não comem: é raro ver uma menina alimentar-se racionalmente de peixem carne e vinho. Comem doce e alface. Jantam as sobremesas. A gulodice do açúcar, dos bolos, das natas, é uma perpétua desnutrição. Os antigos moralistas atribuíam-lhe mesmo uma influência deplorável nos costumes e no carácer. Nas casas de província, onde a moral existe guardada em decrépitos provérbios como em frascos, dizem os velhos, com ingénuo horror:mulher gulosa, bicha manhosa.

Lisboa é uma cidade doceira, como Paris é uma cidade intelectual. Paris cria a ideia e Lisboa o pastel. Daí a grande quantidade de doenças de estômago e de maus dentes. A deterioração pelo doce começa aos quatro anos. O sangue alimentado a massa, ovos, natas, dá estes corpos débeis e estas almas amolecidas. O Baltresqui, o Ferrari, a Confeitaria Lisbonense arrasam o nosso organismo social.

Outra causa de doença é a toilette. Com estes penteados enormes, eriçados,insólitos, em forma de capacete, de fronha, de chalé, de concha, e com os materiais tenebrosos que metem por baixo para sustentar e erguer mais a construção inclemente – acumulam sobra a cabeça um fardo, uma trouxa, que não deixa arejar o crânio. A transudação acumula-se à raiz do cabelo, fecha os poros, cria um estado de inflamação. Ouve-se dizer quase sempre ás mulheres – Sinto hoje um peso na cabeça !... É p fardo! É o crânio que, sem ar, amolentado, está adoecendo como um corpo que se não despe.

Lisboa é a cidade do Universo onde as raparigas mais se apertam e se espartilham. O espartilho que destrói a beleza da linha, a melodia das curvas naturais, dificulta, ao mesmo tempo, a circulação, a respiração e a digestão. Fere as três causas da vida.
De modo que o balanço das condições físicas de uma rapariga portuguesa é este:
Músculo sem exercício;
Pulões sem ar;
Circulação comprimida;
Digestão estrangulada.

A primeira consequência é que uma rapariga assim destrói a sua beleza, a vivaz mocidade, e a graça. A pele amarelece, os olhos encovam, os lábios gretam, as orlehas despegam do crânio, o nariz afila, as mãos humedecem, todo o corpo corcova – e na bela idade da florescência, e na fresca expansão da vida, uma pobre rapariga de quinze anos ou dezoito anos está como alguma coisa de amarrotado, de melado, de murcho, de em segunda mão, com aquele aspecto safado que o pó das estradas dá à virgindade das folhas.

Começam a precisar, para serem bonitas, da luz do gás. No brilho artificial daquela luz crua uma menina, com os cabelos lustrosos, um pouso de pó-de-arroz, e muitos tules espalhados, tem encanto e pode seduzir. Mas que venha, ao outro dia, a sincera luz da manhã! Todas as máculas destacam: os cabelos, chamuscados, do ferro de frisar, estão secos e cor de rato, os beiços são como um velho bago de romã espremida, o nariz tem, na cartilagem que o liga ao rosto, um vinco escuro, toda a pele parece a de uma galinha cozinda! Ah!...o velho Paris não lhe daria a maçã.

É a moda, dizem. – Cruel razão! A moda começa por ter isto de absurdo: não é ela que é feita para o corpo –mas o corpo que tem de ser modificado para se ajeitar nela. A moda vem de fora, do figurino, feita pela fantasia burguesa de um desenhador de armazém: e aqui, depois, a pobre mulher precisa de reformar o corpo, obra do seu bom Deus – para o acomodar ao figurino, obra do seu mau jornal. De modo que para sustentar o chapéu deforma-se a cabeça; para obedecer ao puff torce—se a espinha; para satisfazer às botinas Luís XV desconjunta-se o pé; para seguir p chique das baixas destrói-se o busto. Nunca como hoje, sob o domínio da democracia, se desprezou, se desteriorou tanto o corpo humano. Não é com a intenção mística daquela santa que cortou o nariz para aniquilar as glórias mortais da sua beleza! Não! Hoje mais do que nunca se glorifica a beleza, e o corpo é o fim supremo. Somente não se aceita o corpo que a natureza dá – e procura-se aquele que se vende nas modistas.

(…)

A moda destrói a beleza e destrói o espírito. Um caixeiro desenha a lápis, em Paris um certo chapéu, um certo corpete, umas certas mangas – e todas, magras e gordas, as loiras e as trigeiras, as altas e as baixas, se introduzem, se alojam, se enfiam naquele molde, sem se preocuparem se o seu corpo, a sua cor, o seu perfil, a sua altra, o seu peito, condizem, harmonizam, vão bem com o seu molde decretado e chegado pelo correio. Abandonando-se servilmente ao figurin, abdicam a sua originalidade, o seu gosto. Aceitam uma banalidade em seda – e um lugar comum com folhos. Uma senhora que não inventa e não cria os seus vestidos – é como um escritor que não acha e nãonventa as suas ideias. Ter a toilette do figurino, é fazer como os merceeiros que têm a opinião da sua gazeta. Desabitua o espírito da invenção, da espontaneidade, da liberdade. É uma confissão tácita de que se não tem espírito, nem fantasia.

(…)

Depois da anemia do corpo, o que nas nossas raparigas mais impressiona – é a fraqueza moral que revelam os modos e os hábitos. Nada mais significativo, já notámos, que o seu modo de andar. Veja-se o andar de uma inglesa, elástico, firme, direito, sério: sente-se ali a saúde, a decisão, a coragem, a personalidade bem afirmada. Veja-se o andar de uma menina portuguesa, arrastado, incerto, hesitante, mórbido: sente-se aí a indecisão, a timidez, a incoerência.

A sua preguiça é um dos seus males. O dia de uma menina de dezoito anos é assim dissipado: almoça, vai-se pentear, corre o Diário de Notícias, cantarola um pouco pela casa, pega no croché ou na costura, atira-os para o lado, chega à janela, passa pelo espelho, dá duas pancadinhas no cabelo, adianta mais dois pontos no trabalho, deixa-o cari no regaço, come um bocadinho de doce, conversa vagamente, volta ao espelho, e assim vai puxando o tempo pelas orlhas, derreada com a sua ociosidade, e bocejando as horas.

Outro mal seu é o medo, um medo horrível de tudo; de ladrões, de trovoada, de fantasmas, da morte, dos corredores escuros, dos castigos de Deus, dos soldado e das máscaras. Não são capazes de atravessar uma sala apagada *a meia-noite; se um rato corre no soalho, saltam para cima dos móveis; gritam só com ver um revólver; têm os terrores que têm os canários.

Não há nelas nenhuma decisão, um quase nada as embaraça. É necessário que tudo em roda na vida seja muito fácil, muito claro, muito pronto; de outro modo, hesitam, estacam, sucumbem. Um não, uma carruagem que falta, o relógio que parou, o tempo que mudou – e aí estão inutilizadas. Bastavê-las no Inverni, num grande dia de chuva. A inglesa, se tem que fazer compras ou visitas, põe o seu water-proof, calça as suas galochas, toma o seu guarda-chuva, e aí vai chapinando a lama. A portuguesa em casa encolhida, amuada, inclusa ( segundo a pitoresca expressão do nosso grande desenhista Manuel de Macedo), cai, por causa de alguns pingos de água, numa desolação maior que a de Job sobre o seu monturo.

(…)

Daqui vem a sua falta de acção, a sua infeliz «passividade». Uma menina portuguesa não tem iniciativa, nem determinação, nem vontade. Precisa de ser mandada e governada; de outro modo, irresoluta e suspensa, fica no meio da vida, com os braços caídos. Perante um perigo, uma crise de família, uma situação difícil, rezam. Têm a fé abstracta que só Deus as pode inspirar, dar-lhes a decisão, a ideia precia: mas terminam quase sempre por seguir o conselho da criada.

Veja-se que companheira para a vida do homem – e do homem moderno que não é um trovador ou um contemplativo, nem um sultão para ter aninhadas, em fofas almofadas, huris perfumadas; mas um trabalhador, que precisa ganhar o seu pão, arca com todas as durezas da vida. Como há-de ele lutar com os braços sobrecarregados por estas criaturinhas que desfalecem e gemem, cheias de puff, de pós-de-arroz, de rabuge, e de mimos de romance!

(…)

Vejamos, um pouco, como as nossas raparigas portuguesas se formam, lentamente, sob a educação interior. As mães põem nas suas pequerruchas todo o interesse que um artista põe na sua glória: e tratam de dar a essa um relevo magnífico. Começam por as vestir como pequeninas senhoras! A pequerrucha de seis, oito anosm uma baby, um bocadinho de criatura, um nadinha de mulher, ei-la já com gravidades de dama, seriazita, coberta de fitas, de rendas, de folhos! Na idade em que precisam de toda a liberdade de corpo e de movimentos para crescer, já trazem a cinta apertada num anel tirânico, a cabeça oprimida por duros penteados em que o ferro lhes cresta o cabelo, os pezinhos devorados pelo verniz, e anquinhas epuffs, e um grande aparato, que é o cárcere do anjo.

(…)

Ao mesmo tempo vai-se-lhe ensinando o catecismo e a doutrina. É a educação moral. A pequerrucha aprende a persignar-se, a ajoelhar com gravidade, a recitar o padre-nosso. Depois, seguidamente, decora todas as orações da cartilha. E termina por papaguear a Doutrina correntemente, de cor e salteada, como a tabuada ou como as capitais da Europa – mas sem a menor compreensão, sem ligar uma ideia sua às palavras mortas, sentindo através delas um certo terror – porque se tarta de Deus e segundo lhe ensinam é Deus quem manda as trovoadas, as doeças, a morte.

Ora para que se ensina a religião a um homem ou a uma mulher? Para lhe dar um guia para a sua consciência eum guia para a sua inteligência; uma doutrina que lhe mostre o que deve pensar e que lhe aponte o que deve fazer: critério para bem-julgar e critério para bem-viver. O que se lhe ensina , porem,o Catecismo? Uma série de fórmulas e de palavras combinadas, cujo sentido lhe é tão estranho como uma língua ignorada. Aprende-a maquinalmente, á maneira de uma lição de escola que tem de recitar a certas horas, depressa ou devagar, por obrigação, como se penteia e como trata as unhas.

(…)

A curiosidade tem sido muito caluniada: e este nobre impulso humano é quase sempre considerado como um simples vício de criado. No entanto da curiosidade proveio toda a civilização, a Ciência, a Filosofia, as invenções, as descobertas de continentes: toda a História, toda a Crítica, é obra da curiosidade.(…) Mas é necessário saber como a educação a dirige. Descobrii a América e escutar a uma porta – são dois factos de curiosidade. Toda a criança é curiosa; resta saber se os que a educam, pelos factos e pelas ideias que oferecem ao exercício da sua curiosidade, farão dela – uma descobridora ou ua mexeriqueira.

Em Portugal, as mulheres, excluídas da vida pública, da indústria, do comércio, da literatura, de quase tudo, pelos hábitos ou pelas leis, ficam de posse apenas de um pequeno mundo, seu elemento natural – a família e a toilette. Daqui provém que senhoras reundas, conversando, giram – como borboletas em torno de um globo de candeeiro – em volta destes dois supremos assuntos: vestidos e namoros. A criança – grande ouvido e grande curiosidade – absorve, como um esponja chupa a água, tudo o que ouve dizer em redor, no conchego das saias juntas. (…) Ora quais são aqui os factos que oferecem à sua curiosidade as conversas da família, mãe, tiasm amigas ou visitas? Que fulana casou, que aquela se separou do marido, que é inexplicável a riqueza de toilette de outra, que sicrano lhe faz a corte, mas que sicrano tem uma actriz. E sempre os namoros, os vestidos, os escândalos, os mexericos, as histórias de paixões…

(…)

Tem dezasseis ou dezassete anos: ei-la entrando na vida. A educação vai-se completar agora por duas influências – uma interior, a família; outra exterior, a sociedade.
A impressão que nesta idade mais directamente lhe dá a família é toda positiva: a necessidade de ter dinheiro para viver. A organização material da vida e o seu custo, dão-lhe logo a certeza de que sem dinheiro, sem um casamento rico, a vida moderna não é mais que uma perpétua decadência e uma humilhação. Não falemos daqui nem da ricas nem das santas – duas raras espécies. Na família a rapariga vê a constente influência do dinheiro; começa a misturar-se no governo da casa, a entrar nas conversas económicas dos pais, a examinar as contas, a comprar; - hoje o rol dos fornecedores, amanhã o da modista, depois o do estofador, e um chapéu, e um camarote de teatro, e as luvas. Tudo lhe mostra a vida aplicada, como uma bomba aspirante, à bolsa da casa. A ideia do dinheiro torna-se nela fixa.Além disso embebe-se dela, nas conversas, nos jornais. Hoje, no fundo do pensamento ou do sonho, há sempre o dinheiro. A preocupação não é a religião, nem a Pátria, nem a Arte – é o dinheiro. O desinteresse é desprezado como uma ingenuidade bacoca. O mundo estende sofregamente a mão. Primeira profunda influência no espírito da mulher. – Daí o desejo de casar com dinheiro, casar rica; seja o marido velho, imbecil, rude ou trivial, contanto que traga o dinheiro, e o poder que ele da, carruagem, camarote de ópera, toilettes magníficas.- É o que todo o pai em Portugal deseja para sua filha.
Casar rica para gozar: é em que se resolve a ambição de todo o destino feminino. Dinheiro – e sensibilidade.

Coubert, o mais poderoso pintor dos tempos modernos, fez um quadro: As duas meninas do segundo império. É uma paisagem magnífica: duas mulheres solteiras descansam ali, na frescura tépida das sombras. Uma alta, loira, branca, está senta; tem o perfil frio, seco, o olhar direito, e, com um dedo apoiado à face, calcula: sente-se que pensa em dinheiro, juros, acções de companhia e jogo de fundos. A outra, deitada na relva, com os braços estendidos como abraçando a terra, trigueira, de fisionomia nervosa e imaginativa, a testa curta, os lábios secos, cisma: sente-se que sonha festas, bailes, as grandes voluptuosidades, os encontros rápidos e perigosos no fundo de um parque, e todas as exaltações da sensibilidade. Hoje, pela educação moderna dos colégios, cidades, romances, teatros, música, moral contemporânea - as duas meninas do segundo império, estão em cada mulher: fria ambição de dinheiro, exaltado ardor de sentimentalismo.

Eça de Queirós