3.3.07

É cientificamente falso que estamos predeterminados para a violência e a guerra


Mais do que nunca é oportuno e actual divulgar um texto histórico sobre o carácter adquirido dos comportamentos violentos e a guerra como facto social e não biológico. Trata-se de uma declaração elaborada por uma equipa interdisciplinar de 20 cientistas de diferentes proveniências e que estiveram reunidos em Sevilla sob a égide da UNESCO no ano de 1986 por ocasião do Ano Internacional da Paz

DECLARAÇÃO SOBRE A VIOLÊNCIA

É cientificamente INCORRECTO:

«… que tenhamos herdado a tendência para fazer a guerra»

«…que o comportamento violento se encontra geneticamente programado na natureza humana»

«…que a guerra tem a sua origem no instinto ou qualquer outra motivação simples»


Na convicção de que é nossa responsabilidade manifestarmo-nos, a partir das nossas áreas científicas a que cada um pertence, sobre as mais perigosas e destrutivas actividades da espécie, a violência e a guerra; reconhecendo que a ciência é um produto cultural humano que não é definitivo nem é capaz de tudo abranger; e, agradecendo, desde já, o apoio às autoridades sevilhanas e aos representantes da Comissão Espanhola da UNESCO; nós, os abaixo-assinados, cientistas de todo o mundo e especialistas de diversas ciências relevantes, depois de reunidos chegamos à seguinte Declaração sobre a Violência. Serve esta para impugnar um certo número de pretensas descobertas biológicas, inclusive, em algumas das nossas áreas científicas, e que tem servido para justificar a violência e a guerra. Uma vez que estas supostas descobertas contribuíram para a criação de uma atmosfera de pessimismo nos dias de hoje, propomos que esta rejeição, aberta e devidamente ponderada, contribua significativamente para o Ano Internacional da Paz.

O uso incorrecto das teorias científicas e de certos dados para justificar a violência e a guerra não constitui novidade, tendo sido invocado desde o advento da ciência moderna. Por exemplo, a teoria da evolução foi usada não só para justificar a guerra como também para legitimar o genocídio, o colonialismo e a eliminação dos mais fracos.

Elaboramos a nossa declaração em cinco pontos. Estamos conscientes que existem muitos outros aspectos sobre a violência e a guerra aos quais se poderiam aplicar, de um modo frutífero, os conhecimentos das nossas disciplinas, mas limitemo-nos aqui àquilo que consideramos primacial e o mais importante.

É CIENTIFICAMENTE INCORRECTO dizer que herdamos dos nossos antepassados animais a tendência para fazer a guerra. Ainda que as lutas sejam frequentes em todas as espécies animais, são poucos os casos de destruição por acção de grupos organizados, e em nenhum se inclui o uso de instrumentos preparados como são as armas. Quanto ao facto dos predadores se alimentarem de outras espécies, tal não deve ser equiparado à violência entre as espécies. A guerra é um fenómeno humano peculiar que não acontece entre os demais animais.

A circunstância de a guerra se ter transformado tão radicalmente com o passar do tempo, mostra que é um produto cultural. A sua conexão biológica tem lugar, essencialmente, através da linguagem, a qual possibilita a coordenação entre os grupos, a transmissão da tecnologia e o uso de ferramentas. A guerra é biologicamente possível, mas não é inevitável, como evidenciam as suas variações no tempo e no espaço. Existem culturas que não desencadearam guerras durante centenas de anos e existem outras que se lançaram em frequentes lutas numas épocas, e não noutras.

É CIENTIFICAMENTE INCORRECTO dizer que no decurso da evolução humana houvesse uma selecção de comportamentos agressivos em maior medida do que outros comportamentos. Em todas as espécies estudadas o estatuto dentro do grupo adquire-se pela aptidão em cooperar e cumprir funções sociais relevantes para a estrutura do próprio grupo.

O «predomínio» implica vínculos sociais e filiações, e não é simplesmente um assunto de posse e uso de maior força física, ainda que possa implicar comportamentos agressivos. Ali onde um comportamento agressivo se impôs artificialmente nos animais por efeito da selecção genética, rapidamente se produziram indivíduos hiperagressivos; tal facto mostra que a agressão não foi seleccionada em condições naturais. Quando tais animais hiperagressivos, criados experimentalmente se encontram num grupo social, ou bem que afectam a sua estrutura social ou são expulsos para fora dela. A violência não está no nosso legado evolutivo nem nos nossos genes.

É CIENTIFICAMENTE INCORRECTO dizer que os humanos possuem um «cérebro violento». Se temos um sistema nervoso capaz de actuar violentamente, este não automaticamente activado por estímulos externos ou internos. Tal como nos primatas superiores, e diferentemente do que ocorre com os outros animais, o nossos processos nervosos superiores filtram tais estímulos antes de serem realizados. Não existe nada na nossa neurofisiologia que nos obrigue a reagir violentamente.

É CIENTIFICAMENTE INCORRECTO dizer que a guerra tem a sua origem no «instinto» ou em qualquer outra motivação simples. O aparecimento da guerra moderna implica um processo que vais desde os factores emocionais e motivacionais – chamados às vezes «instintos» - até aos factores cognoscitivos. A guerra moderna implica o uso institucional de características pessoais, tais como a obediência, sugestibilidade ou idealismo, técnicas sociais como a linguagem, e considerações racionais como o cálculo de custos/benefícios, a planificação e o processo de informação. A tecnologia da guerra moderna empolou os traços associados com a violência, tanto na formação de combatentes como na preparação do apoio à guerra entre a população em geral. Como resultado desse empolamento, tais características são com frequência interpretadas como causas e não como consequências do processo.

Concluímos afirmando que a biologia não condena a humanidade à guerra, e que a humanidade pode libertar-se da escravidão do pessimismo biológico e equipar-se com a confiança necessária para realizar as tarefas de transformação necessárias para este Ano Internacional da Paz e os anos vindouros. Apesar dessas tarefas serem principalmente institucionais e colectivas, baseiam-se também na consciência dos participantes individuais, para o que pessimismo e optimismo são factores essenciais. Assim como as guerras nascem nas mentes dos homens, assim também a paz começa nas nossas mentes. A mesma espécie que inventou a guerra é capaz de inventar a paz. A responsabilidade é de cada um de nós.

Sevilha, 16 de Maio de 1986


Assinado por

DAVID ADAMS, Psicología, Wesleyan University, Middletown (CT), EU. S.A. Barnett, Etología, The Australian National University, Canberra, Australia.

N. P BETCHEREVA, Neurofisiología, Instituto de Medicina Experimental de la Academia de Ciencias Médicas de la URSS, Leningrado, URSS.

BONNIE FRANK CARTER, Psicología, Albert Einstein Medical Center, Filadelfia (PA), EU.

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SANTIAGO GENOVES, Antropología biológica, Insti­tuto de Estudios Antropológicos, Méjico D. F, Mé­jico.

JOSÉ LUIS DIAZ, Etología, Instituto Mexicano de Psiquiatría, Méjico D. F, Méjico.

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SAMIR-KUMAR GHOSH, Sociología, Instituto Indio de Ciencias Humanas, Calcuta, India.

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FEDERICO MAYOR ZARAGOZA, Bioquímica, Univer sidad Autónoma, Madrid, España.

DIANA L. MENDOZA, Etología, Universidad de Sevilla, España.

ASHÍS NANDY, Psicología Política, Centro de Estudios de las Sociedades en Desarrollo, Delhi, India.

JOHN PAUL SCOTT, Comportamiento Animal, Bow­ling Green State University, Bowling Green (OH), E U.

RIITTA WALSTROM, Psicología, Universidad de Jyväskylä, Finlandia.