27.9.06

Os negros, de Jean Genet

Os negros, de Jean Genet, com encenação de Rogério de Carvalho - em representação no TNSJ
( 15 Set a 8 Out)


Textos retirados de:
http://www.tnsj.pt/


Prefácio ( por J.Genet)

Que acontecerá a esta peça quando tiverem desaparecido, por um lado, o desprezo e a repugnância, por outro, a raiva impotente e o ódio que formam o fundo das relações entre a gente de cor e os brancos – em suma, quando entre uns e outros se tecerem laços humanos? Será esquecida. Aceito que só hoje faça sentido.
Que tom adoptaria um negro para se dirigir a um público branco? Vários o fizeram. Ora encantadores, ora reivindicadores, indicavam o seu temperamento singular. Eu próprio, falando com um negro, não sei que lhe dizer e como dizê-lo: só consigo distinguir o indivíduo particular e com ele entro em sintonia. Mas se tivesse de me dirigir a um público de negros, recusar-me-ia a fazê-lo. Perante eles, teria a sensação demasiado aguda de que a Brancura quer falar à Negritude. É preciso ser-se muito louco ou muito cobarde para aceitar semelhante diálogo. Semelhante sermão, melhor dizendo. E falar não seria porventura o mais arriscado; onde iria eu, Homem-Branco, buscar a emoção capaz de engendrar o mito que os pudesse sacudir? A expressão teatral não é um discurso. Acto poético, ela quer impor-se como um imperativo categórico perante o qual, sem contudo capitular, a razão entra em banho-maria. Julgo ser possível encontrar a expressão única que seria compreendida por todos os homens. Mas as metamorfoses da História, em lugar de conduzirem as sociedades para uma crescente compreensão mútua, endurecem-nas sob uma casca de singularidade, de tal maneira que a nossa primeira preocupação seria quebrar essa casca dentro da qual todo o ser que se queira livre se impacienta.
No passado mês de Dezembro, Raymond Rouleau comunicou-me a sua intenção de formar uma companhia teatral composta unicamente de negros. Conheço mal as razões que o norteiam. A bem dizer, preocupei-me pouco com a questão, julgando adivinhar que Rouleau neles via admiráveis objectos cénicos até hoje nunca utilizados na Europa. Quando me pediu para escrever uma peça para a sua companhia, aceitei.
“Sim, disse para comigo, os negros representarão. Mas organizarão um espectáculo que será uma afronta lançada à cara dos espectadores.”
Porque, mal a ideia de uma representação teatral pelos negros encontrou formulação, logo me veio à mente o exemplo a não seguir, contra o qual era preciso lutar: Catherine Dunham.
Ainda nos lembramos dos seus ballets. Será que eram irrepreensíveis à luz da estética do music-hall? É bem possível. Dançados unicamente por negros, o que é que indicavam? Donde vinham? De que eram embaixadores? De que império soberano? Pálidos, descolorados, emanavam de um mundo sem poder terrestre, sem raízes, sem dor, sem lágrimas e sem vontade de ter semelhantes atributos, de um mundo de ectoplasmas que se recusa a experimentar a sua própria realização. Nunca através deles nos foi dada a conhecer a infelicidade de um mundo negro, cada dia mais irrealizado. Nem as suas raivas, nem as suas misérias, nem as suas cóleras, nem os seus medos. Senti-me incomodado, até à náusea, por aqueles negros atléticos que aceitavam propor ao público – americano à partida – um divertimento de encher as medidas, no qual apareceriam transbordantes de talento, de mestria, de beleza, e assim se mostravam em posturas inofensivas, quando a simples audácia de roçar com o cotovelo um cidadão yankee lhes seria recusada. Não somente o espectáculo nunca chegava a insultar-nos, nunca nos dava a ver a sua miséria nem o seu desespero, como, ainda por cima, tudo cantava aquilo a que chamamos alegria de viver, tudo nos consolava, com baixeza, daquilo que sabemos da vida e da população negra, dizendo-nos que nada os feria profundamente porque essa sua alegria era tão fresca. Traição. Não sei se terei a audácia de afirmar que todo o acto – e todo o gesto – nascidos da humilhação devem tingir-se de revolta, mas há que considerar medíocre e miserável uma arte nascida da ofensa e da domesticação que se recuse a ter em conta a miséria. Não defendo este ponto de vista por motivos de generosidade fácil, trata-se antes de uma exigência em favor da arte que só tem vigor na medida em que se apoia na realidade donde provém, testemunhando sobre essa realidade.
Será que responder à inimizade dos brancos com um sorriso, ao desprezo com um deboche de talento, e mostrar aos brancos hostis ou indiferentes que “se é um homem como os outros”, ou seja, um homem dotado de gosto, de habilidade e até de génio, chegando ao cúmulo de lhes dedicar, oferecer talento e génio, é tomar uma atitude bastante bela e generosa? Dir-me-ão que oferecer assim uma possibilidade de conciliação talvez seja prova de inteligência. Não vou nessa conversa. A atitude desses negros era da ordem da sedução, da prostituição, daquela cabotinagem a que recorrem os escravos favorecidos: Esopo escrevia fábulas para distrair o amo, beliscando-lhe a orelha – e logo o amo passava para outro divertimento.
A arte é o refúgio menos vil dos escravos. Mas não pode querer-se tão-só desinteressada e destinada a divertir os ócios do senhor. Justifica-se se incitar à revolta activa ou se, pelo menos, introduzir na alma do opressor a dúvida e um mal-estar devido à sua própria injustiça. Não podemos naturalmente ter em conta os encantos de uma arte cuja ternura e cuja tristeza evoquem somente a nostalgia de um paraíso perdido. Uma revolta deflagrou no Quénia: ousaríamos imaginar os Kikuios a tentarem seduzir os ingleses através das suas danças? Certas danças lascivas seriam porventura capazes de amolecer e derrotar mais facilmente o opressor apopléctico, colocando-o à sua mercê, mas não os imaginamos a procurar aplausos. Ousaríamos imaginá-los no papel de saltimbancos que voltam para saudar o público, assim perdendo a sua alma, a sua severidade, a sua violência? A fim de consigo arrastarem outras tribos para a revolta, talvez montem espectáculos de propaganda, mas então que sublimes pretextos não escreverão cujo sentido e cuja beleza formal nos haverão de escapar, dado que não se dirigem a nós!
A peça que ides ler não tem portanto como objectivo incitar os negros à revolta. Um apelo dessa natureza não pode vir de uma consciência branca através da obra de arte. [Só os envolvimentos na acção directa seriam eficazes. rasurado] Esta peça não é [pois rasurado] feita para eles. [Passo a explicar. rasurado] Quer queira quer não, pertenço à comunidade branca. Estou ligado aos brancos por todo um contexto cultural. Querer escrever para os negros seria fruto dessa abjecção moral que consiste em curvar-se generosamente, com toda a compreensão, para os fracos, em comprazer-se na boa consciência, em julgar-se dispensado de qualquer acção eficaz. Seria abrigar-se na moral e nos bons sentimentos, quando os homens por quem se toma partido haverão de se debater na miséria, na merda da acção, no compromisso. As minorias devem conquistar elas próprias as suas liberdades. É preciso desconfiarmos do nosso entusiasmo pelas causas generosas, pois ele transforma-se rapidamente em auto-complacência. Não tardaria a sentirmo-nos seguros de nós mesmos, atolando-nos na gelatina de um conforto moral muito satisfatório. Porque, no fim de contas, é bastante agradável defender os oprimidos pela palavra ou pela pena, quando se beneficia, simultaneamente, das benesses da comunidade opressora e da gratidão dos oprimidos. Não digo que seja necessário recusar sistematicamente ajuda aos oprimidos, mas antes que ela será vã se, ao mesmo tempo, não se combater o poder dominador ao serviço do qual se está, do qual se beneficia e no qual se participa; ou seja: se não se lutar contra si próprio. Trata-se pois de actos de maldade, praticados contra quem os comete, que têm como objectivo libertar-nos da casca a que anteriormente aludi.
Deleitando-se ou não com isso, o opressor dificilmente apaga em si a imagem do oprimido reduzido à servidão – [se assim não fosse rasurado] para que serviria a opressão, se não para lhe dar uma ideia da força resultante da fraqueza daqueles que reconhecem e veneram essa força –, sendo que essa imagem o tranquiliza e o encanta. É tão-só uma imagem e é [semelhante rasurado] ela que [ele rasurado] tentará transformar o oprimido. E se essa imagem, que traz dentro de si, começasse a inquietar o opressor?
Em contrapartida, era-me permitido tentar ferir os brancos e, graças a essa ferida, fazer penetrar a dúvida. Para nada esconder, devo dizer que me parece necessário que um acto escandaloso os obrigue ao questionamento e à inquietação, relativamente a este verdadeiro problema que não causa o menor conflito nas suas almas.
A partir do momento em que aceitei o princípio de uma peça escrita por um branco a ser representada por negros, quis que esta peça só pudesse ser representada por eles – e sobre a necessidade da obra teatral muito haveria a dizer. Acto poético, esta peça foi-me porventura imposta por uma exigência interior, modo do meu próprio drama, que me esforcei por nortear para um fim exterior a mim. O ponto de partida, o arranque, veio-me de uma caixa de música cujos autómatos eram quatro negros, de libré, que se inclinavam perante uma princesinha de porcelana branca. Esse encantador bibelot data do século XVIII. Será que na nossa época conseguiríamos imaginar, sem ironia, uma réplica: quatro criados brancos a fazerem vénias a uma princesa negra? Nada mudou. Que se passa então na alma dessas personagens obscuras que a nossa civilização aceitou no seu imaginário, mas sempre sob a aparência ligeiramente jocosa de cariátides de mesinha de pé de galo, de pajens ou de criados de café fardados? São feitos de trapos, não têm alma. E, se porventura alma têm, o sonho deles é comer a princesa.
Dir-me-ão que não representam toda a África. Se os interrogar, saberão responder por ela? Temo bem que sim, justamente. Do ponto de vista de uma consciência branca, eles são a África precisamente, no sentido em que simbolizam o estado no qual a nossa imaginação se compraz em situá-los, em fixá-los. Não me venham dizer que há cientistas, médicos, engenheiros negros, que alguns são cidadãos franceses, súbditos britânicos, estou farto de o saber. Farto de saber também que, por muito que até tivessem criados brancos, aquilo que continua a simbolizar as nossas relações é o encantador motivo da caixa de música do século XVIII.
Algumas centenas de milhares de escravos negros vivem o seu embrutecimento na miséria, no cansaço e na fome. A revolta contra as condições terríveis de vida elementar levá-los-á, aos poucos, a tomar consciência da sua realidade e da sua equivalência de seres humanos; ao vencerem no plano real das reivindicações sociais, conseguirão reconhecer-se como iguais ao resto dos homens que, a pouco e pouco, de capitulação em capitulação, perderão provavelmente a sua soberba. Com esses, quando se encontram no coração da orgulhosa revolta e, graças a ela, no fogo da acção, não temos que nos preocupar aqui: estão salvos. Nunca entrarão no nosso imaginário sob a forma de lacaios submissos. Porém, como vemos nós, de facto, os negros?
Formulada assim, a pergunta não haveria de querer dizer nada. Com os olhos do espírito, o Europeu mais obtuso é capaz de os ver na sua miséria, na sua situação de escravos. Mas como “sentimos” nós os negros?
Porventura, vemo-los como gado, como uma manada que deve ser rentável, mas é preciso fornecer às nossas consciências cristãs e humanitárias uma justificação apaziguadora. Ei-los: os negros são inferiores, cobardes, mentirosos, sonsos, preguiçosos e ingénuos, ou seja, incapazes de se elevarem ao patamar da reflexão intelectual. Acabo ou não de definir o criado típico da comédia? Excepto que o criado clássico ainda pertence – tendo em conta a cor de pele e os traços – à comunidade da qual, por um misterioso facto, foi subtraído, mas na qual se reintegrará, se enriquecer, por exemplo, enquanto que o negro dela será eternamente banido.
Ora, quando não se encontram no fogo da revolta activa, será que os negros são mesmo assim? E as minhas quatro figuras, que têm em comum com os negros que pensam e com os que estão condenados aos trabalhos forçados das minas e das plantações africanas? A questão é importante. A psicologia do oprimido é grosso modo decidida pela do opressor, neste caso o colonialista, fruto de uma política capitalista e racista. É impiedoso, embora aparentemente se radique num fingimento de liberalismo e conceda alguns favores ao oprimido. Então, o que é que acontece? Incapaz de convencer – falta-lhe um método dialéctico parente do nosso, falta-lhe o domínio da nossa língua e a força material que dá peso a qualquer argumentação –, o oprimido vai tentar seduzir-nos. Muito cedo e muito depressa, desenvolverá em si as virtudes femininas da sedução: e eis o criado, ou a sua réplica decorativa – o actor. O negro serve-nos e encanta-nos. A sua disponibilidade arrebata-nos. Mas, na sua solidão, que poderá representar o actor condenado pelo nosso pulso férreo a ser apenas um actor? Na verdade, nunca virá a matar o seu amo, felizmente, cruzes canhoto! Pois se os seus actos são sempre fictícios e a sua faca sem gume. Contra quem vai poder virar-se desenfreadamente?
Não estou a dizer que os negros sejam actores por natureza. Digo, bem pelo contrário, que se tornam actores na nossa consciência e que o são mal se vêem olhados pelos brancos. E são-no sempre, já que os vemos antes de os vermos – e os pensamos à luz das categorias que acima enumerei.
Posto que nos recusamos a vê-los na sua realidade de homens revoltados – de outro modo, a nossa atitude para com eles seria diferente –, é preciso que os vejamos nesse jogo. Esse jogo que simultaneamente os torna irreais e coincidentes com a ideia que nos apraz ter deles. Que mais disse eu além disto: quando vemos os negros, será que vemos algo mais do que fantasmas precisos e obscuros, nascidos do nosso desejo? Mas que pensam de nós esses fantasmas? Que jogo jogam eles?
Fantasmas que já existem ou nos quais os forçaremos a transformar-se e que só aceitaremos aplaudir nas suas momices, se apenas assim forem no nosso desejo de castrar toda uma raça, recusando-lhe o direito à realidade – eis o que devem pensar, ruminar, esses fantasmas, apesar de tudo. Se não mostro a política que pretende reduzi-los a isso, é porque está previamente implicada no olhar que os brancos sobre eles têm. Acrescente-se ainda que esta comédia da sedução do senhor pelo escravo não se desenrolará sem revolta dentro da sedução em si mesma. Talvez seja após o deleite advindo de delícias demasiado irrisórias e inconfessáveis que surge a revolta?
É dentro da minha própria língua que me exprimo, é sobre ela que quero agir, é dela que espero as imagens, as metáforas que me servirão para definir os negros, os quais, no segredo das suas almas, se procuram, se perseguem, ajudados por metáforas que farão deles aquilo que eu ignoro. A minha língua, orgulho da minha raça e do meu povo, destinada a dar de mim a sua derradeira definição, não posso acreditar que não a odeiem – no preciso momento em que se esforçam por aprendê-la. Poderão as figuras que vão surgir dessa língua ser outra coisa a não ser a projecção, no palco, dos fantasmas de verdadeiros negros que eu gostaria de metamorfosear?
Esta peça foi escrita num mundo burguês. Aponta para o que esse mundo sacou de toda uma raça quando ela se encontrou em contacto com ele. Está apostada em ferir esse mundo com as suas armas mais seguras. Claro que, num universo socialista, semelhante peça e semelhante autor são improváveis. Como também o são num mundo humilhado. Como também o são num mundo negro.
Durante muito tempo, a minha situação foi a de um humilhado. Não se espantem que seja a partir das consequências da humilhação – por fim vitoriosa sobre si própria – que mostro o devir dos humilhados. Conheço o perigo que me espreita. Não irei tingir com as cores do meu desespero a atitude de toda uma raça que conhece outro desespero, que vive outro desespero, de uma outra ordem?
Já não se trata propriamente de lacaios de nariz achatado e calções azul celeste, estes negros de que se fala na peça; são tranquilos descascadores de paletúvios, calmos estivadores, bons mineiros – mas o que é que lhes vai na cabeça? Sei que as relações com o mundo da estiva, da mina, etc., não permitem o sonho e não desenvolvem o gosto pela sedução. Certo. E quando gozam de um instante de repouso propício ao devaneio? Sei que tanta miséria só pode conduzir à revolta e que já há muitos líderes – brancos e negros – a conduzir os seus camaradas rumo a uma tomada de consciência e a desenvolver o gosto pela responsabilidade: temo bem que o proletariado negro venha a ser obrigado a dobrar o cabo da comédia, tal é o poder dominador de atracção do mundo branco que, até no simbolismo religioso, atribuiu a cor negra aos demónios do seu inferno. Possa o negro simbolizar o mal.
Também é portanto possível que o meu desespero particular me ponha melhor do que a ninguém ao corrente do desespero de toda uma raça. Saberei transcender suficientemente o meu drama pessoal para descrever um outro, mais geral? Mas, acima de tudo, não se confunda uma efusão lírica com uma palavra de ordem política. Embora possam, tanto uma como a outra, concorrer para os mesmos fins, não devem ser escutadas da mesma maneira. Como saberia eu se e de que maneira os negros devem exaltar a sua negritude? E que vem a ser essa negritude que eu não vivi e que a intuição nunca me revelará? Se semelhante exigência recomendasse, fá-la-ia aos negros fantasmáticos desejados pelos brancos. A humilhação vivida até ao desespero por um indivíduo pode ser transcendida na obra de arte. Pode ser fonte de liberdade. Esse triunfo – por muito secreto que permanecesse – permite ao artista apreender o mundo real, ser reconhecido pelos outros. Mas uma colectividade que vive na humilhação não consegue safar-se dessa maneira. O desespero transcendido graças à obra de arte só permite o triunfo de alguns indivíduos que, se tal acontecesse, se evadiriam porventura da colectividade oprimida, sem proveito para ela – pois ela só conquistará a salvação através da revolta efectiva e no domínio dos factos reais.
Esta peça foi escrita não em favor dos negros, mas contra os brancos. Será que nela manifesto ainda o ressentimento de um homem que foi condenado à humilhação e ao desespero? Será que a peça não é um acto generoso, mas antes a explosão de uma alma malvada? Talvez, quem sabe? Mas, antes de mais, não digamos demasiado mal da maldade, ou melhor, da crueldade – se ela se exercer contra mim mesmo. Em todo o caso, tem o seguinte a seu favor: mais seguramente do que de um sentimento generoso, estará porventura na origem de uma obra de arte generosa, pois terá tendência a prosseguir no imaginário.

* Este texto, que foi publicado pela primeira vez na íntegra no Théâtre complet de Genet (Bibliothèque de la Pléiade, 2002, p. 835-843), conhecera uma publicação parcial, decidida pelo próprio autor, em Les Nègres au Port de la Lune (Éditions de la Différence, 1988), sob o título “A Arte é um Refúgio”. A fortuna deste texto, datado de 1955, é curiosa: Genet não quis utilizá-lo nem na primeira edição, em 1958, nem na segunda, em 1960, quando o seu editor, Marc Barbezat, lhe pedira um prefácio (do qual ele próprio recusara a primeira versão). Nestas páginas, Genet demonstra uma seriedade e um fôlego crítico que não lhe são habituais, sobretudo se nos referirmos à “Lettre a Jean-Jacques Pauvert” que prefacia As Criadas, em 1954. Genet questiona a sua própria posição em matéria política e examina as lições que não pretende dar aos negros, chamados tão-só a uma “tomada de consciência”. Convém recordar que os anos 1955-1960 constituem, com o fim da guerra da Indochina e o início da guerra da Argélia, um período de inquietação para os dramaturgos que, de Adamov a Sartre e a Vinaver, se interrogam, por diversos meios, acerca do “empenhamento” da arte ao serviço da reflexão e da acção políticas.

Jean Genet – “Préface de Jean Genet pour Les Nègres”. In Les Nègres. Édition présentée, établie et annotée par Michel Corvin. [Paris]: Gallimard, D.L. 2005. (Folio. Théâtre). p. 141-149.
Trad. Regina Guimarães.



CRONOLOGIA

1910 19 de Dezembro. Nascimento de Jean Genet em Paris, filho de Camille Gabrielle Genet e de pai desconhecido.

1911 28 de Julho. Camille Genet abandona o filho no Hospice des Enfants-Assistés; torna-se pupilo da Assistência pública.
30 de Julho. O pupilo é entregue aos cuidados do casal Eugénie e Charles Régnier, pequenos artesãos da aldeia de Alligny-en-Morvan. É baptizado no dia 10 de Setembro e receberá uma educação católica.

1916 Setembro. Jean Genet é matriculado na escola primária.

1919 24 de Fevereiro. Morte em Paris, de gripe espanhola, de Camille Genet, aos trinta anos de idade.

1923 30 de Junho. Genet é primeiro classificado no exame da escola primária local.

1924 17 de Outubro. Graças aos bons resultados escolares, Genet escapa ao estatuto de criado agrícola e é colocado como aprendiz para se tornar tipógrafo na escola de Alembert. Foge quinze dias após a sua chegada a Paris. Encontrado em Nice, é de novo entregue aos serviços do Hospice des Enfants-Assistés.

1925 Abril. Colocado em casa do compositor cego René de Buxeuil, desvia uma pequena soma de dinheiro. É despedido e colocado sob observação no Hospital Sainte-Anne, num serviço de psiquiatria infantil.

1926 Fevereiro-Julho. Fugas, detenções e encarcerações sucessivas.
2 de Setembro. O tribunal confia-o à colónia agrícola penitenciária de Mettray até atingir a maioridade; aí permanecerá durante dois anos e meio.

1929 1 de Março. Antecipa a recruta e alista-se por dois anos. No mês de Outubro, obtém o grau de cabo, que manterá ao longo dos seis anos de carreira militar.

1930 – 1936 É enviado para a Síria (onde terá o primeiro contacto com o mundo árabe, ao qual ficará ligado toda a vida), para Marrocos, ou fica aquartelado em França.

1936 Julho-Dezembro. Após a sua deserção do exército, para escapar às perseguições, enceta, a partir de Nice, um longo périplo de um ano que o leva a Itália, Albânia, Jugoslávia e Áustria. Escorraçado destes países, refugia-se em Brno, Checoslováquia.

1937 Janeiro-Maio. Pede direito de asilo; conhece Ann Bloch, jovem alemã de origem judia, a quem dá lições de francês e com quem manterá uma correspondência quase amorosa.
16 de Setembro. De regresso a Paris, rouba lenços num grande armazém e é condenado a um mês de prisão com pena suspensa.

1938-1941 Segue-se uma série de roubos (de tecidos, de livros) que levam a condenações que oscilam entre os quinze dias e os dez meses.

1942 Março. Possui uma banca de alfarrabista junto a um cais do Sena, fornecida pelos seus roubos de livros; prossegue a redacção de Notre-Dame-des-Fleurs/Nossa Senhora das Flores (que começou a escrever na prisão no início desse ano), bem como da primeira versão de Haute surveillance/Alta Vigilância, intitulada Pour “la Belle”.
14 de Abril. Novamente preso por roubo de livros, compõe em Fresnes o poema “Le condamné à mort”/“O Condenado à Morte”, cuja impressão custeia. A redacção de Nossa Senhora das Flores é concluída no final do ano.

1943 15 de Fevereiro. É apresentado a Jean Cocteau, que lê com grande admiração o poema “O Condenado à Morte” e que se empenha em encontrar editor para Nossa Senhora das Flores.
1 de Março. Assinatura do primeiro contrato de autor com Paul Morihien, secretário de Cocteau, para três romances, um poema e cinco peças de teatro.


29 de Maio. Nova detenção por roubo de uma edição de luxo de Verlaine. É passível de “degredo perpétuo” por “roubo com reincidência”. Cocteau confia a sua defesa a um grande advogado. Examinado por um psiquiatra, Genet é declarado “destituído de vontade e do sentido moral”.
19 de Julho. Graças a Cocteau, escapa à reclusão perpétua e é condenado a três meses de prisão. No estabelecimento prisional de La Santé, redige Miracle de la rose.
Dezembro. Novamente detido, Genet arrisca-se a ser deportado.

1944 14 de Março. Graças a inúmeras intervenções, é finalmente libertado; não voltará mais à prisão.
Abril. Publicação de um excerto de Nossa Senhora das Flores na revista L’Arbalète, de Marc Barbezat. Em princípios de Maio, conhece Jean-Paul Sartre.
19 de Agosto. Morte nas barricadas, aquando da libertação de Paris, de Jean Decarnin, jovem resistente comunista, companheiro de Jean Genet.

1945 Março. Publicação de uma antologia de poemas, Chants secrets, nas Éditions de L’Arbalète.

1946 Março. Miracle de la rose é publicado nas Éditions de L’Arbalète. Reescrita de uma peça antiga, Alta Vigilância. Escreve Les Bonnes/As Criadas.


Julho-Agosto. Publicação na revista Les Temps modernes de excertos de Journal du voleur. Em Marselha, Genet conhece Louis Jouvet e mostra-lhe uma versão de As Criadas. Jouvet aceita montar a peça, após algumas modificações do texto.

1947 Março. Publicação de Alta Vigilância na revista La Nef.


19 de Abril. Encenação de As Criadas no Théâtre de l’Athénée (por Louis Jouvet). A primeira versão (não corrigida por Jouvet) é publicada na revista L’Arbalète. O prémio da Pléiade é atribuído a Genet, em Julho.
Novembro-Dezembro. Publicação clandestina de Pompes funèbres/Pompas Fúnebres, dedicado à memória de Jean Decarnin, e de Querelle de Brest/Querelle – Amar e Matar.

1948 31 de Maio. Os ballets Roland Petit estreiam no Théâtre Marigny ’adame Miroir, com cenários de Paul Delvaux, figurinos de Léonor Fini e música de Darius Milhaud.
Julho. É lançada uma petição, por iniciativa de Cocteau e de Sartre, com vista a obter o perdão definitivo de Genet, que ainda estava sujeito a uma pena de dez meses de prisão.
Agosto. Publicação de Poèmes nas Éditions de L’Arbalète. Redacção do texto radiofónico L’enfant criminel/A Criança Criminosa, cuja difusão foi proibida, e de Splendid’s, peça que renuncia a ver encenada e editada. Publicação clandestina de Journal du voleur em Genebra.

1949 20 de Fevereiro. Jean Marchat encena Alta Vigilância no Théâtre des Mathurins. A peça é publicada em Março pela Gallimard. Publicação de ’adame Miroir, A Criança Criminosa e Journal du voleur.


12 de Agosto. O presidente Vincent Auriol concede a Genet o indulto definitivo.

1950 Abril-Junho. Rodagem de Un chant d’amour, único filme inteiramente realizado por Genet.

1951 Fevereiro. Início da publicação das Œuvres complètes de Genet pela Gallimard. O primeiro volume, constituído pelo texto de Sartre, Saint Genet, comédien et martyr, só será lançado no ano seguinte.
Outubro. Redacção do guião “Les Rêves interdits” ou “L’Autre Versant des rêves”, que resultará no filme Mademoiselle.

1952 Maio. Redacção do guião de Le Bagne.
Agosto. Crise moral na sequência da publicação do ensaio de Sartre. Várias viagens pela Europa e Norte de África.

1953 Janeiro. Publicação do terceiro volume das suas Œuvres complètes pela Gallimard.

1954 Janeiro. A peça As Criadas é, pela primeira vez, reencenada (na sua primeira versão, anterior aos arranjos de Jouvet e editada em Maio de 1947) no Théâtre de la Huchette por Tania Balachova. Publicação das duas versões por Jean-Jacques Pauvert, com um prefácio do autor.

1955 Após seis anos de silêncio, novo período de intensa criatividade. Redige simultaneamente Le Balcon/O Balcão, Les Nègres/Os Negros e Les Paravents/Os Biombos. Em Novembro, escreve Elle. Conhece Abdallah, jovem acrobata.

1956 Junho. Publicação nas Éditions de L’Arbalète da peça O Balcão, com uma litografia de Alberto Giacometti.

1957 Março. Redacção de Le Funambule/O Funâmbulo, dedicado a Abdallah e publicado na revista Preuves.
Abril. Redacção de L’Atelier d’Alberto Giacometti. Vai a Londres assistir à estreia do seu texto O Balcão (encenado por Peter Zadek). Tenta proibir a representação.

1958 Janeiro. Publicação de Os Negros nas Éditions de L’Arbalète. Inúmeras viagens.
Junho. Acaba a primeira versão de Os Biombos.

1959 Genet trabalha na escrita de Le Bagne, que deverá constituir o segundo painel do “ciclo teatral” com que sonha e que nunca terminará.
28 de Outubro. Encenação de Os Negros por Roger Blin, no Théâtre de Lutèce. Genet reescreve Os Biombos na Grécia.

1960 18 de Maio. Após Londres, Berlim e Nova Iorque, O Balcão estreia-se em França, Paris, no Théâtre du Gymnase, numa encenação de Peter Brook. Nova versão da peça nas Éditions de L’Arbalète.

1961 Fevereiro. Publicação de Os Biombos pelas Éditions de L’Arbalète, última obra que Genet publicou em vida; a peça estreia-se no dia 19 de Maio, em Berlim, numa encenação de Hans Lietzau.
Outubro. Jean-Marie Serreau encena As Criadas no Odéon.

1962 Nova versão da peça O Balcão pelas Éditions de L’Arbalète, antecedida de “Comment jouer Le Balcon”.

1963 Setembro. Publicação nos Estados Unidos de Our Lady of the Flowers e de Saint Genet, Actor and Martyr.

1964 12 de Março. Suicídio de Abdallah. Em Agosto, Genet declara renunciar à literatura e redige um testamento.

1965 Novembro. O Departamento de Estado dos Estados Unidos recusa-lhe um visto de estadia, invocando “desvio sexual”.

1966 16 de Abril. Apresentação de Os Biombos no Odéon-Théâtre de France, com encenação de Roger Blin.
12 de Maio. Projecção no Festival de Cannes de Mademoiselle, filme realizado por Tony Richardson a partir do argumento “Les Rêves interdits”.

1967 Abril. Lançamento de “L’étrange mot d’…”/“A Estranha Palavra…” na revista Tel Quel. Partida para o Extremo Oriente no final do ano.

1968 30 de Maio. Publica no Le Nouvel Observateur o seu primeiro artigo político, “Les maîtresses de Lénine”.
24-28 de Agosto. Participa, em Chicago, nas manifestações contra a guerra do Vietname.

1970 Participa em inúmeras manifestações pela defesa dos imigrantes. Nova estadia nos Estados Unidos a convite dos Black Panthers; dá numerosas conferências. Em Julho, escreve o prefácio da colectânea das cartas de prisão de George Jackson, Les Frères de Soledad. Intervém em favor de Angela Davis. No dia 20 de Agosto, aceita um convite dos palestinianos. Permanecerá no Médio Oriente vários meses e aí fará quatro estadas em dois anos.

1971 Novembro-Dezembro. Participa nas acções de Michel Foucault e de Gilles Deleuze em favor dos prisioneiros e trabalhadores árabes.

1972 Redige um longo artigo, “Les Palestiniens”, e prossegue a redacção de notas sobre os palestinianos e os Black Panthers (que resultarão, catorze anos mais tarde, na obra Un captif amoureux).

1974 Maio. Participa em debates políticos e apoia François Mitterrand, candidato às eleições presidenciais, no L’Humanité.
Setembro. Jacques Derrida consagra um livro a Genet, Glas.

1976 Empreende a redacção de um argumento cinematográfico, “La Nuit venue”. Segunda edição de Os Biombos nas Éditions de L’Arbalète.

1977 2 de Setembro. Publicação de “Violence et brutalité”, no jornal Le Monde, onde justifica a acção da “Fracção Exército Vermelho”, artigo que suscita uma acesa polémica.

1979 Maio. Começa um tratamento de quimioterapia para debelar um cancro na garganta.

1981 Começa a redigir um novo argumento cinematográfico, “Le Langage de la muraille”, que evoca a colónia de Mettray.

1982 25 de Janeiro. Entrevista filmada com Bertrand Poirot-Delpech. Instala-se progressivamente em Marrocos, que elegerá como local de residência principal.
11 de Setembro. Regressa ao Médio Oriente e é uma das primeiras testemunhas dos massacres de Sabra e Chatila. Escreve então Quatre heures à Chatila/Quatro Horas em Chatila, publicado em Janeiro de 1983 na Revue d’études palestiniennes.
Dezembro. Rainer Werner Fassbinder apresenta o filme Querelle, a partir do romance de Genet, no Festival de Veneza.

1983 Junho-Julho. Início da redacção de Un captif amoureux. Patrice Chéreau encena Os Biombos no Théâtre des Amandiers, e Peter Stein encena Os Negros na Schaubühne de Berlim. Genet recebe, em Paris, o Grand Prix national des Lettres.

1985 Agosto. Acompanhado pelo encenador Michel Dumoulin, escreve, em Rabat, uma nova versão de Alta Vigilância.
Novembro. Conclui Un captif amoureux, do qual entrega o manuscrito a Laurent Boyer, que será seu testamenteiro. O livro será lançado um mês após a sua morte.
Dezembro. O Balcão é representado na Comédie-Française (encenado por Georges Lavaudant).

1986 Março. Corrige as primeiras provas de Un captif amoureux e volta para Marrocos por dez dias.
15 de Abril. Jean Genet morre num pequeno quarto de hotel, em Paris. É enterrado no velho cemitério espanhol de Larache, em Marrocos.

Michel Corvin – “Chronologie: 1910-1986”. In Jean Genet – Les Nègres. Édition présentée, établie et annotée par Michel Corvin. [Paris]: Gallimard, D.L. 2005. (Folio. Théâtre). p. 127-133.
Esta cronologia é largamente inspirada na que foi estabelecida por Albert Dichy (para a biografia de Jean Genet por Edmund White).
Trad. Regina Guimarães.

A música sob alta vigilância ( a propósito de Fernando Lopes-Graça)



É a voz do Portugal moderno. Conhecia profundamente as obras-primas de Debussy ou de Stravinsky, mas bebeu a sua inspiração nas canções populares portuguesas. Penou para ganhar a vida como músico, mas é o autor de uma das obras mais vastas de toda a música do século XX. Acumulou prémios e distinções por essas obras, mas jamais foi oficialmente reconhecido como digno de exercer o seu ofício durante o Estado Novo. Poderia ter forjado uma carreira fulgurante em França, ou nos Estados Unidos, se tivesse escolhido o exílio, como Prokofiev; ao invés, partiu para o combate com a sua caneta e o seu papel pautado, os seus artigos e a sua música, ao lado dos grupos antifascistas, durante quase meio século.

Totalmente empenhado, social e politicamente, colocou-se no entanto sempreà margem de quaisquer dogmas. Ferozmente independente, preso por diversas vezes pela polícia política de Salazar (a PIDE), manteve-se ainda assim o espírito mais livre do mundo artístico da sua época. Fernando Lopes-Graça completaria 100 anos em 17 de Dezembro de 2006.

Música, Revolução e Liberdade

1906 foi, ao mesmo tempo, o ano do nascimento do titã Chostakovitch em São Petersburgo, e o ano da publicação das vinte primeiras canções populares harmonizadas por Béla Bartók. Se a obra do compositor soviético é imensa, a de Lopes- Graça exprimir-se-á igualmente em todos os domínios da música. O nacionalismo musical de Béla Bartók será o modelo a partir do qual desenvolverá o seu próprio caminho enquanto compositor português: é como que um duplo prelúdio simbólico da vinda ao mundo de Fernando Lopes-Graça na pequena cidade de Tomar, onde a luz é "o monumento [que] completa a paisagem; a paisagemé o quadro digno do monumento; e a luzé o elemento transfigurador e glorificador da união quase consubstancial da Natureza com a Arte".

Depois da estreia como pianista no cine-teatro da sua cidade natal, Lopes- Graça entra para o curso superior do Conservatório Nacional de Lisboa em 1923, nas classes de gloriosos antecessores: Tomás Borba e Luís de Freitas Branco, e em 1927 foi admitido no curso de virtuosidade do grande José Viana da Mota. Em 1928, a personalidade de Lopes-Graça entra em cena: interpreta a sua primeira obra, intitulada Variações Sobre um Tema Popular Português, e inicia as primeiras acções de resistência política em Tomar, ao fundar o jornal A Acção. Pagará caro o pertencer à Organização Comunista de Tomar. Depois de obter as mais altas classificações e prémios no Conservatório, é impedido de comparecer no dia do concurso ao posto de professor. Em 27 de Outubro de 1931, o compositor Luís de Freitas Branco anota no seu diário: "A cena que se passou no Conservatório é grave e sintomática: dois agentes da polícia quiseram levar preso o candidato a concurso para a cadeira de Piano, Fernando Lopes-Graça. A prisão era motivada por inscrições nas paredes da cidade de Tomar, de que Fernando Lopes- Graça teria sido autor e instigador, e que significavam pouco amor à ditadura. O júri protestou, impôs-se à polícia, o candidato prestou as suas provas, seguiu preso para Santarém mas ficou classificado em primeiro lugar com 18 valores".

Fernando Lopes-Graça é encarcerado no Aljube e colocado durante algum tempo em residência vigiada em Alpiarça, onde escreve: "Revolução e Liberdade são sinónimos, são equivalentes. São leis imutáveis gravadas na face do Cosmo, eternas e divinas como ele".

Resistir pela música e pela escrita

A resistência de Lopes-Graça ao regime político não passa somente pela música mas também pela escrita; é um defensor convicto do modernismo estético, contrastando assim com o status quo então em vigor. Em 1929, funda a revista De Música, com Pedro do Prado, na qual colaboram outros compositores, como Armando José Fernandes (também nascido em 1906) e Jorge Croner de Vasconcelos. Dá diversas primeiras audições em Portugal de obras de autores tão importantes como Hindemith ou Schoenberg, frequenta a Faculdade de Letras, e escreve ainda na revista Presença ao lado de poetas vanguardistas portugueses.

Não obstante as suas extraordinárias capacidades de compositor, ensaísta e pianista, o regime não lhe permite aproveitar uma bolsa, obtida em 1934, para estudar musicologia em Paris. Imperturbável, e depois de ter sido de novo preso em 1936, Lopes-Graça irá em 1937, eàs suas próprias custas, estudar com Charles Koechlin em Paris (composição e orquestração). Na Cidade Luz participa das actividades culturais da Frente Popular e escreve uma série de crónicas musicais parisienses para a revista Portugal. A Segunda Guerra Mundial rebenta, Lopes-Graça alista-se no corpo de voluntários Amis de la République Française e colabora com numerosos exilados da guerra civil espanhola, mas recusa uma proposta de naturalização francesa e regressa a Lisboa para escapar às botarras nazis.


Em Portugal continua a escrever o que pensa, nomeadamente como crítico musical de O Diabo e da Seara Nova. Em 1941, as suas opiniões valem-lhe ser impedido de ensinar nos estabelecimentos oficiais: doravante continuará incansavelmente o seu labor pedagógico, musical e político no seio da Academia de Amadores de Música. No Século Ilustrado escreve: "A Academia é o meu lar musical. (...). Como artista, mas sobretudo como pedagogo, aqui me realizei na medida em que me foi vedado realizar-me noutros sectores".
Organiza o Coro da Academia de Amadores de Música e compõe as Canções Heróicas, afirmando assim o seu amor pelo Povo e a constância da sua trajectória artística. Estas Canções, que ele apelidava de "utilitárias", serviram directamenteà militância política pela causa democrática e resistência antifascista. As primeiras publicações das Heróicas, na Seara Nova em 1946, serão proibidas pela censura, que impedia ainda que os poemas fossem ouvidos e cantados em espectáculos ou sessões públicas.

Mesmo assim, e paralelamente a estas obras politicamente empenhadas, o seu notável trabalho de criador moderno e visionário é recompensado por quatro vezes com o Prémio de Composição do Círculo de Cultura Musical, nomeadamente em 1944, com a História Trágico-Marítima, grande cantata para tenor e orquestra sobre um poema de Miguel Torga, testemunho evidente das escolhas temáticas de Lopes-Graça, firmemente ancoradas na História de Portugal. Funda ainda a Sociedade de Concertos Sonata, orientada para a difusão da música do século XX, cujos concertos eram vigiados de muito perto pela PIDE, encarregada, por exemplo (quando de um concerto em 1951), de identificar os espectadores que se distinguissem no meio da multidão por aplausos considerados demasiado "excessivos"...

O reconhecimento internacional

Entre dias de luta e prisões políticas, Lopes-Graça é, porém, cada vez mais conhecido fora de Portugal: participa nos congressos de intelectuais na Polónia e na Checoslováquia, mas guarda sempre devidas distâncias em relação às posições estético- ideológicas do 2.° Congresso dos Compositores Progressistas de Praga, e dos regimes comunistas em geral.



É, em 1947, que empreende o seu trabalho pioneiro em prol da identidade da música portuguesa do século XX: a recolha científica dos cantares e músicas tradicionais do país, realizada com o francês (de origem corsa) Michel Giacometti, trabalho que resulta, em finais dos anos 50, num volume impressionante de gravações classificadas e analisadas, que cobrem todo o território nacional, incluindo as ilhas da Madeira e Açores. Estas músicas, já estudadas por Lopes-Graça desde 1938, à época das suas primeiras harmonizações de canções populares, permanecerão vivas em toda a comunidade rural do país, e são a essência da sua linguagem musical tão pessoal.
Mau grado a riqueza deste trabalho imenso, essencial para a música portuguesa (como o foi o de Béla Bartók para a música da Hungria), Lopes-Graça nãoé autorizado a deslocar-se ao júri do Concurso Internacional Béla Bartók, de Budapeste, que o havia convidado em 1949.É o seguimento de um plano de isolamento engendrado pelo regime, afim de evitar que o compositor alargasse os seus contactos internacionais. Nesta lógica fascista, a sua correspondência em 1965 com o violoncelista Mstislav Rostropovitch, que lhe havia encomendado o Concerto da Camera con Violoncello Obligatto, será sistematicamente boicotada pela PIDE. O Ministro da Educação Nacional obriga-o a abandonar em 1954 o seu diploma de ensino privado: é forçado a deixar a Academia de Amadores de Música e a fazer traduções (Rousseau, Romain Rolland…), tentando sobreviver a todo o custo.

Sem descanso, continua porém a bater- se pela identidade musical do seu país: compõe e harmoniza com uma fé inabalável na liberdade futura. Da sua mão nascem sucessivamente as Viagens na Minha Terra (1953), as Melodias Rústicas Portuguesas (1956), a 5ª série das Canções Populares Portuguesas (1959), e os 24 cadernos das Canções Regionais Portuguesas, que abrangem os anos entre 1943 e 1988…
Um símbolo: em 1960, para as comemorações do 50.º aniversário da República, não hesita em editar o segundo volume das Canções Heróicas, que é vendido clandestinamente! Lopes-Graça declara:"Poderia dizer-lhes enfim, como além de uma Arte a considero [a Música] uma Religião, a minha única religião (...) e como visiono uma única Religião do Futuro, a única Religião de uma Humanidade Livre, Justa e Sábia".

A voz do povo na música erudita

Somente a seguir ao 25 de Abril de 1974 poderá Fernando Lopes-Graça viver livremente da sua música, como compositor; viver vinte anos de uma liberdade há tanto esperada… Membro do Partido Comunista até à morte, quis "fazer entrar a voz do povo na música erudita" e fazer esta chegar a franjas da sociedade onde normalmente não chegava. Criador de um"folclore imaginário", segundo a expressão francesa associada a Bartók, Lopes- Graça é também autor de livros essenciais no plano da reflexão estético-musicológica, nos quais confronta a vitalidade da poesia portuguesa e a falta de identidade da música portuguesa. Fará a apologia da canção (lied) composta sobre textos dos maiores poetas nacionais de todas as épocas: Eugénio de Andrade, Gil Vicente, Bocage, Camões, Mário Cesariny, Fernando Pessoa, João José Cochofel, Antero de Quental…

A sua obra vocal/coral é gigantesca, e conta - somente obras "a cappella" - 228 canções escritas de 1940 a 1980! Segundo o compositor francês Louis Saguer, seu grande amigo, a música de Fernando Lopes-Graça é de uma grande multiplicidade de técnicas e estilos: "da tonalidade mais clássica ao atonalismo mais marcante, repleta das ricas polifonias da música regional portuguesa e alimentada por um vasto tesouro constituído pelas obras-primas do mundo inteiro. A sua pesquisa expande-se em todas as direcções, sempre na certeza de encontrar a síntese necessária à sua expressão como músico e cidadão". O compositor, falecido em 27 de Novembro de 1994, deixará atrás de si um monumento de mais de 260 obras.

Antes dele, a música portuguesa não possuía uma continuidade histórica, nenhum compositor podia reclamar a sua música como resultado do processo evolutivo de um pensamento musical português. Músico mítico com mil facetas, carregando nele todas as particularidades, sofrimentos e esperanças do povo português, Fernando Lopes-Graça traçou magistralmente a via para a identidade dos compositores de hoje. A porta da sua casa na Parede estava sempre aberta aos jovens apaixonados pela música, como testemunha Sérgio Azevedo, um dos mais brilhantes compositores actuais.


A admiração por Beethoven e Bartók fez nascer nele essa extrema exigência em relação a si próprio e também em relação aos outros, e à sociedade que viu nascer a sua música. Cumulado de honras logo a seguir à Revolução, foi reintegrado nas funções de director da Academia de Amadores de Música e nomeado presidente da Comissão para a Reforma do Ensino Musical. Foram inúmeras as inevitáveis e múltiplas condecorações que então recebeu. Encomendado pela Secretaria de Estado da Cultura, o Requiem - Pelas Vítimas do Fascismo em Portugal é estreado a 27 de Julho de 1981. Entre os cantores solistas nesse dia memorável, uma amiga de sempre: a contralto Dulce Cabrita, maravilhosa intérprete da sua música, como o serão também ao longo de toda a sua vida, fiéis na arte e a seu lado na luta, o escritor João José Cochofel, o guitarista Piñero Nagy, o barítono Fernando Serafim, os pianistas Filipe de Sousa, Olga Prats, Nella Maissa e, sobretudo, Maria da Graça Amado da Cunha (criadora de um número considerável de obras, cujo touché sensível era a autoridade, a inteligência mesmo) e tantos outros que, ao escolherem interpretar a música de Fernando Lopes-Graça, correram riscos por lutar, quer pela liberdade, quer por servir a obra de um compositor hoje em dia essencial à História da Música do século XX.

Bruno Belthoise* (músico e compositor), texto traduzido por Sérgio Azevedo
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PIB e Felicidade Interna Bruta



Considera-se que os países mais desenvolvidos são os que têm o PIB (Produto Interno Bruto) mais elevado. Compreende-se. O PIB per capita diz respeito a um conjunto de bens materiais teoricamente dividido pelos habitantes de cada país. Esses bens não são de facto divididos por todos: isso seria uma desgraça.

Vejamos: comparemos o PIB a uma macieira carregada de maçãs; para determinar o valor do PIB, basta dividir o número de maçãs da macieira pelo número de comensais legítimos, digamos, 200 maçãs por dez habitantes da quinta daria 10 para cada um.
Mas, na realidade, 150 maçãs vão para o dono da macieira e as outras 50 são distribuídas pelas restantes 9 pessoas da quinta; esta distribuição das 200 maçãs seria feita do seguinte modo:
· 150 para o dono da macieira, como já disse
· 20 para o feitor da quinta
· 10 para o ajudante do feitor
· 5 para o ajudante do ajudante do feitor
· 5 para a mulher do feitor
· 3 para a mulher do ajudante do feitor
· 2 para a mulher do ajudante do ajudante do feitor
· 4 para o camponês mais submisso
· 1 para a mulher do camponês
· 0 para o outro camponês que, se quiser comer maçãs, tem de pedir emprestado.


No entanto, dir-se-á com toda a justiça que essa quinta terá um PIB, e portanto um desenvolvimento, maior e melhor do que o de uma outra que só tenha 180 maçãs e o mesmo número de habitantes.
O facto de haver gente que fica com quase nada dessa riqueza e até gente que fica com rigorosamente nada, a não ser ficar em dívida e ter de agradecer ainda por cima, não interessa para nada.
O PIB não é para levar a sério, não é para dizer como é que a riqueza de um povo se distribui realmente; O PIB per capita é uma conta de dividir que serve para, nas eleições, garantir que o país vai ficar rico, embora o povo continue tão pobre como estava antes. Ao povo será dada a enorme satisfação de viver num país rico que, assim terá todas as condições para ganhar o Campeonato Mundial de Futebol. Portanto, ao povo compete escolher o Primeiro Ministro mais capaz de conseguir estes objectivos. Se os objectivos não forem alcançados, a culpa é do povo que escolheu mal. Nas eleições seguintes, alguém se encarregará de explicar tim tim por tim como é que o povo deve fazer desta vez. Felizmente, as coisas são assim mesmo, e quem não estiver contente com o que tem é porque nem aquilo que tem merece ter.

Vejamos um exemplo concreto: os trabalhadores portugueses, segundo os relatórios internacionais, são daqueles que mais horas trabalham, mas são dos menos produtivos a nível dos países ocidentais.
Como pode acontecer uma coisa destas? Será que quem forneceu os dados aos relatores decidiu aldrabar as coisas? De forma nenhuma. As contas são feitas com todo o requinte, e não é fácil aldrabar gente tão inteligente, isto é, gente que até trabalhando menos consegue produzir mais.
Eu explico, para que todos percebam a superior inteligência dos senhores que fazem esses relatórios: suponhamos que o total da riqueza produzida num país é medida em pregos; poderíamos pensar, nós, os pouco produtivos, que quanto mais pregos fossem produzidos mais riqueza haveria nesse país, mas não, não é assim.
A cada prego é dado um valor (a tal riqueza): em Portugal, um prego, por exemplo, vale 1 cêntimo (deveria dizer-se um centavo, mas a vida é assim mesmo, quem manda, manda e até pode exigir uma palavra nova para dizer uma coisa velha); num outro país, com o mesmo número de trabalhadores, cada prego vale 2 cêntimos.
Resultado: os trabalhadores portugueses teriam de produzir o dobro dos pregos para serem tão produtivos como os do outro país que nos serve de comparação.

Digam lá: isto não é saber muito? Assim é que está bem.

E agora, com toda a imparcialidade, tentemos verificar de quem é a culpa de os pregos valerem menos em Portugal. Não é preciso pensar muito: é dos trabalhadores que, se fossem mais produtivos, conseguiriam valorizar mais a produção de pregos.
Como produzem pouco, os pregos não valem um chavo. Querem o quê? Milagres?
Há no entanto um fulano, cujo nome não lembro agora, que propõe que os países adoptem um outro tipo de medida do desenvolvimento, em alternativa ao PIB. Propõe nem mais nem menos do que a FIB (Felicidade Interna Bruta). O que é que este sujeito queria? Revolucionar as coisas.
Vejamos como.. O que ele queria era que se medisse a riqueza efectivamente distribuída por todos, deixando-se de fazer a tal operação de dividir abstracta e, por isso, tão exacta que permite apurar as coisas à milionésima das partes a dividir, isto é:
-medir as condições de acolhimento dos idosos: quantos beneficiam de boas condições de vida
-fazer o mesmo com as crianças e
-enfim com toda a gente
-subtrair a pobreza ao valor apurado, etc... coisas destas.
Está-se mesmo a ver aonde isto nos levava. Toda a gente ia querer viver bem.
E isso não pode ser, como se está também a ver…

Retirado de:

http://sobreabanalidade.blogspotcom

Portugal tem 3ª maior densidade automóvel da União Europeia


O automóvel é uma droga dura...
.
O automóvel é o meio utilizado em mais de 85% dos quilómetros feitos nas deslocações dos portugueses e o país está entre os três países com maior densidade de automóveis (quase 600 por 1.000 habitantes), mais de um carro por cada dois residentes, atrás do Luxemburgo e da Itália.
Os números constam de um relatório divulgado pelo Eurostat sobre a evolução dos meios de transportes utilizados na União Europeia, o qual sublinha que entre 1990 e 2004 a utilização do automóvel para deslocações aumentou 38% na UE a Vinte cinco. A incidência de utilização de carro próprio nas deslocações diárias em Portugal não é muito superior à média da UE (83%).
A generalidade dos países está acima de 70%, com excepção da Hungria, onde a percentagem de utilização do automóvel (em relação a outros meios de transporte) é 59%.
O estudo refere que, em 2002, o parque automóvel nacional totalizava cerca de 5,79 milhões de ligeiros de passageiros. Comparando o stock entre os anos 1990 e 2004, o parque nacional registou um crescimento superior a 130%, o ritmo mais elevado dos Quinze e o terceiro mais forte de toda a UE-25. Do total de km percorridos/habitante o autocarro foi a opção para menos de 10% da distância, enquanto o comboio foi o modo de transporte utilizado em menos de 5% das deslocações. Ainda para Portugal, o total de quilómetros (km) percorridos por pessoa (em automóvel) superou os 9.320 km, em 2003, para uma distância média diária de 29,9 km.
O relatório, divulgado no âmbito da semana da Mobilidade (Dia Europeu sem carros celebra-se a 22 de Setembro), indica que a distância total percorrida nas deslocações dos europeus aumentou 14% entre 1995 e 2003, devido a maior utilização de carro próprio e de ouros modos de transporte (metro e eléctrico).
Em 2004, indica o gabinete europeu de estatística, 20% de todo o parque automóvel da UE estava registado na Alemanha (45 milhões de veículos), enquanto a Itália detinha 35% dos motociclos (nove milhões de unidades).
Comparando recursos em outros meios de transporte, a República Checa é a campeã em termos de rede ferroviária, com uma densidade de 122 metros por cada km2 do território, mais do dobro da média europeia (55 metros/km2).


Bento XVI: o cruzado

retirado de:

O papa Bento XVI, homem de fino trato e de ilimitado bom senso, para além de infalível, resolveu dizer na Alemanha que Maomé impôs o Islão a golpes de espada. Sua santidade não o disse directamente, limitou-se a citar um imperador bizantino. Numa altura em que Bush e seus sequazes querem convencer o mundo de que está em curso uma guerra religiosa e um choque de civilizações, o infalível chefe da Igreja de Roma deu uma ajuda aos falcões de Washington e incendiou o mundo islâmico, desde o Paquistão até Marrocos. Que os belicistas americanos queiram levar o terror a todo o mundo, compreende-se, eles precisam de vender armas e munições. Precisam de sacar petróleo a todo o custo para olearem bem as peças do american way of life. Mas Bento XVI, chefe de uma igreja que carrega às costas milhões de mortos em nome de Deus, podia estar discretamente calado ou a rezar baixinho. As vítimas das Cruzadas merecem o seu recato. As vítimas da Inquisição exigem o seu bom-senso. A escravatura, benzida pela sua Igreja e justificada pela dilatação da Fé em África, na Ásia e na América Latina é uma mancha tão vergonhosa da Humanidade que Bento XVI, antes de atirar pedras aos telhados dos outros, devia antes refazer o telhado esburacado da sua casa. No mínimo.