29.12.05

Kropotkine, defensor da cooperação e do apoio mútuo



Pierre Kropotkine ( 1842-1921), anarquista russo, preconizava uma «revolução» baseada no apoio mútuo e inspirada nas comunidades tradicionais, em oposição às ideias darwinistas da competição surgidas na época e que são hoje dominantes. Era também um dos poucos anarquistas a rejeitar toda a violência.

«Quando deixei as montanhas depois de uma semana passada junto dos trabalhadores relojoeiros suíços, a minha opinião sobre o socialismo tinha-se consolidado. Tinha-me tornado anarquista ». Tais são as palavras pronunciadas em 1872 pelo príncipe russo de 30 anos, Pierre Kropotkine. Nenhuma teoria da hereditariedade ou do meio ambiente permitiria explicar a evolução deste homem, muito diferente dos príncipes czaristas do seu tempo. A sua vida tinha tido um percurso assaz clássico. O seu pai era rico e possuía 1.000 servos; a sua família passava o tempo entre a residência moscovita e as suas propriedades rurais. Com a idade de 15 anos, Pierre Kropotkine entra num corpo de elite do exército russo, destinado a tornar-se oficial. Mas desde os 20 anos o seu interesse pela ciência política suplantou o gosto pela vida militar. Solicita então a sua transferência para a Sibéria Oriental, perto da fronteira chinesa, esperando que nesta longínqua região pudesse dedicar-se às suas actividades preferidas. Empreende então um grande número de viagens de exploração totalizando cerca de 80.000 Km, a maior parte delas a cavalo. As observações por si realizadas constituem um contributo ainda hoje largamente reconhecido para o conhecimento da estrutura geológica do continente asiático. Mas a sua vida intelectual enriquece-se, sobretudo, graças às suas observações antropológicas e zoológicas. Encontra numerosos povos tradicionais e apercebe-se que eles eram naturalmente sociáveis…sem necessitarem do auxílio do Estado ou de leis! Foi então levado a questionar a ênfase dada pelo darwinismo sobre a competição e a luta entre os animais da mesma espécie como factor de evolução.
Em 1867 Kropotkine abandona o exército, desiludido com as brutalidades cometidas pelo regime czarista. Nos anos seguinte ocupa-se a dar cursos de geografia, interessando-se pela história da mudança climática e da era glaciar. Por volta de 1871 decide-se consagrar-se à reforma social. Naquela época reforma não podia significar outra coisa que não fosse revolução; é assim que Kropotkine decide viajar pelo estrangeiro a fim de clarificar as suas ideias através dos encontros que manteve com revolucionários da Europa ocidental. O movimento socialista internacional estava em vias de se cindir em dois ramos irreconciliáveis, marxistas e libertário. Não foi preciso muito tempo para Kropotkine escolher o seu campo, graças a uma curta visita à federação igualitária dos relojoeiros na região suíça da Jura.

Kropotkine regressa à Rússia como convicto anarquista e abraça o papel de revolucionário profissional. Não demorou a ser detido. Após dois anos de prisão os seus amigos organizaram a sua evasão do cárcere assim como da Rússia. Nunca mais regressará à sua terra natal até 1919. Passou ainda 3 anos de prisão em França. Entre 1886 e 1917 viveu na Inglaterra como escritor reconhecido, em pleno meio intelectual, tornando-se um destacado teórico do anarquismo.

Um teórico concreto do anarquismo

Os escritos de Kropotkine diferem de muitos textos anarquistas pelo seu conteúdo legível e factual. Desejava lançar os fundamentos científicos e teóricos ao anarquismo. Ao longo dos seus textos ele não discursa, antes dirige-se de forma cortês, afável e erudita ao leitor. Os seus livros resistiram ao tempo e são periodicamente reeditados.

Foi um dos primeiros pensadores a levar a cabo uma análise detalhada sobre a descentralização como a melhor maneira de viver numa sociedade humana. Kropotkine era um optimista e pensava que o mundo iria inelutavelmente nesse sentido. As mudanças previstas levaram, é certo, algum tempo a realizar-se. Foi ele que antecipou assim o tempo em que os países exportadores de alimentos consumiriam a sua produção. «Toda a nossa civilização de classe média está baseada na exploração de raças ditas inferiores e de países industriais menos avançados. A Revolução acabará de produzir benefícios derrubando esta civilização e permitindo que as raças ditas inferiores se libertem. Mas este resultado exteriorizar-se-á por uma diminuição regular da alimentação oferecida nas grandes cidades ocidentais.»A Revolução não é para ele o catalizador necessário deste processo, uma vez que as forças económicas em presença encarregar-se-iam de conduzir a este desenlace. Os economistas ortodoxos do século XIX consideravam o futuro económico do mundo em termos de especialização crescente dos países. «A humanidade deve ser dividida em indústrias especializadas por países. A Rússia devia tornar-se num celeiro de milho, a Inglaterra numa imensa fiação de algodão, a Bélgica num atelier de tecelagem…esta especialização devia abrir uma imenso campo de produção, de consumo de massa e a uma era sem fim de riquezas para toda a humanidade.» Kropotkine notava que os exportadores tradicionais de matérias-primas começavam já a abrir as fabricas nas suas terras. Assim também a Inglaterra devesse abandonar a ideia que os seus habitantes pudessem viver da exportação de bens manufacturados. A Inglaterra devia tornar-se auto-suficiente.
Kropotkine foi muito optimista, pois os optimistas ortodoxos não estavam tão inactivos como ele pensava em 1890… nem mesmo um século mais tarde! Cada vez mais países se especializam em bananas, açúcar, cobre ou cacau.

Campos de alimentação

A etapa seguinte na sua argumentação permanece válida para os países ocidentais. As matérias-primas são cada vez mais difíceis de serem obtidas: se a auto-suficiência é hoje desejável, amanhã ela será uma necessidade. Kropotkine crê firmemente que a Inglaterra, por exemplo, pode ser auto-suficiente, tendo consagrado o primeira parte do seu livro «Fields Factories and Workshops», escrito em 1898, a defender esta tese. Ele escreveu-o após um longo período de diminuição da produção agrícola e, se os números já não são actuais, o certo é que os seus argumentos mantém-se válidos. O mal-estar agrícola era causado pela «deserção, o abandono das terras. Cada cultura exigindo trabalho humano viu a sua área reduzida (…), longe de serem superpovoados os campos ingleses careciam de braços.» No Middlesex, Kropotkine podia percorrer 8 quilómetros ao longo dos campos, «nos quais mal se produziam duas toneladas de palha por meio hectare, e em que um hectare dava para alimentar uma vaca leiteira. E isso a 24 km de Charing Cross ( bairro de Londres), cidade de 5 milhões de habitantes que era abastecida com batatas vindas de New Jersey e do País de Gales, hortaliças francesas e maçãs canadianas.». Ou seja, um modelo oposto à produção intensiva de hortaliça em França, das ilhas Anglo-Normandas e mais uns quantos. Kropotkine era um bom jardineiro, tinha produzido legumes…na prisão e vinhas nos arredores de Londres. O seu entusiasmo pelos hortelãos não tinha limites. «Eles criaram uma agricultura nova…a sua ambição era de ter entre seis a nove culturas sobre o mesmo naco de terra durante um ano. Eles não compreendem o discurso sobre os bons e os maus solos porque são eles próprios que os fazem» com estrume, algas, composto e tudo o que é localmente disponível.
«Mas em Paris o jardineiro não desconfia só do solo mas ainda do clima» pelo que utiliza uns tubos de vidro para aquecer o solo. Com tais métodos uma horta de um hectare, perto de Paris, e no qual trabalham oito pessoas (o que representa um trabalho muito duro segundo Kropotkine, que preferia ver 12 homens a realizar essas tarefas em quatro horas por dia) produz num ano dez toneladas de cenouras, 6.000 alfaces, 3.000 couves-flor, 5.000 cestos de tomates, 154.000 saladas, o bastante para alimentar 350 pessoas.
«Se a população de um país duplicasse tudo o que era preciso para produzir alimentos para 90 milhões de habitantes seria cultivar o solo tal como é cultivado nas melhores quintas. E utilizar os campos que hoje não estão explorados de modo a que as periferias das grandes cidades francesas sejam aproveitadas para o cultivo de hortas».

Na Inglaterra actual existe apenas um meio hectare de terra por pessoa (em França a proporção é de um pouco menos de um hectare por habitante) e produz-se metade da nossa alimentação, os holandeses com três quartos de um hectare por pessoa, mas com um agricultura mais «kropotkiniana» produzem mais de 50% das suas necessidades em alimentação. Um agricultor inglês objectaria dizendo que os seus solos são melhores, mas Kropotkine responderia certamente que a terra é o que se faz dela. «Os solos mais férteis não são as pradarias da América, nem as estepes da Rússia, são antes as turfeiras da Irlanda, as colinas arenosas da costa marítima setentrional francesa, as montanhas pedregosas do Reno, as paisagens modeladas pelo homem.»

A questão da especialização

O grande aumento das horas de trabalho agrícola poderia ser contrariado graças fazendo da agricultura uma actividade a meio-tempo. Note-se que a separação da agricultura com a indústria é um fenómeno moderno, sendo que na Inglaterra essa separação era na época um facto consumado. No resto da Europa milhões de pessoas viviam ainda como camponeses-artesãos ignorados pelos economistas ortodoxos que só viam o seu sistema baseado na indústria logo, o desaparecimento daquele mundo rural. Kropotkine encarou sempre de forma optimista este mundo e pensava que as vantagens lhe garantiriam a sobrevivência. O seu maior argumento a favor das pequenas indústrias descentralizadas era de natureza social ou moral: elas eram: elas eram compatíveis com a felicidade humana numa sociedade justa e livre. Mas era suficientemente realista para se aperceber que as suas convicções morais deviam basear-se no bom senso económico. A maior parte das pessoas não farão o que é justo se não estiverem convencidas que os benefícios materiais serão, pelo menos, iguais aos benefícios de quem pensa as coisas ao contrário. Por isso mesmo é que Kropotkine teve tanto cuidado em demonstrar a eficácia da descentralização económica. A revolução industrial foi feita com base no princípio da divisão do trabalho: uma maior especialização deveria significar maior produtividade. A falha deste raciocínio está em pensar que as pessoas têm necessidade de trabalhar para serem felizes. O ideal da indústria moderna é o de uma criança controlar uma máquina que não entende nem pede satisfações…O ideal da agricultura moderna é o de desembaraçar-se do camponês e de enviar um homem que faça pequenos trabalhos de vigilância e controle sobre uma máquina de ceifar. A divisão de trabalho significaria especializar certos homens nas fábricas de tecelagem, outros como contramestres, outros ainda destinados a puxar os carrinhos de carvão no fundo das minas; mas sem que nenhum deles faça alguma ideia sobre o funcionamento global da maquinaria fabril ou da mina. Ora isso destrói o espírito de inventividade e o amor ao trabalho que permitiu criar a máquina que habitualmente somos tão orgulhosos.

Relocalizar a economia

Mesmo se Kropotkine não escondeu o seu entusiasmo pró-maquinismo, ele foi dos raros a aperceber-se que o problema principal era a escala da mecanização. Aprovava a electricidade como um meio de distribuir facilmente a energia a diferentes locais, tornando assim obsoleto a centralização do industrialismo baseado no carvão. Certamente que a grande escala é necessária a certas indústrias: «Os barcos a vapor não podem ser construídos nas aldeias» ( mesmo se ele se interroga sobre a verdadeira necessidade desses barcos), mas frequentemente «as grandes indústrias não são senão aglomerações…de várias indústrias distintas ou de várias centenas de cópias da mesma máquina». A maior parte das indústrias, conclui, são centralizadas por razões históricas e comerciais, e não técnicas. A relocalização da indústria em pequenas unidades através do campo seria realizável; a agricultura beneficiaria da acumulação do saber-fazer e da disponibilidade dos braços suplementares para o trabalho sazonal. Os trabalhadores seriam mais felizes e com mais saúde, e as clivagens entre cidade e campo, trabalho manual e intelectual seriam superadas. O fosso entre trabalhadores e os consumidores desapareceria e as unidades sociais seriam reduzidas a um tamanho que permitiria o desenvolvimento do sentido de comunidade e a expansão da liberdade.

As provas dadas pela natureza e as populações tradicionais

A crítica mais frequente ao anarquismo é que não toma em consideração o carácter anti-social da natureza humana. Numa das suas obras mais célebres, o Apoio Mútuo, Kropotkine tentou responder a esta objecção fornecendo provas zoológicas, antropológicas e históricas do lugar central da cooperação comparativamente à competição na vida animal e humana. Esse livro era uma resposta a um ensaio de T.H. Huxley ( 1825-1895) sobre a luta pela sobrevivência em que ele comparava o mundo animal a um combate de gladiadores «os mais fortes, os mais apetrechados e os mais preparados que alguma vez apareceram até à próxima batalha.». Ele falava da vida dos homens primitivos como se fosse uma batalha contínua e uma guerra hobbesiana de todos contra todos como o estado normal da existência. Ora as observações feitas por Kropotkine sobre os animais e os povos primitivos na Sibéria rejeitavam aos seus olhos as opiniões de Huxley. No seu livro «Apoio Mútuo» ele baseia-se em numerosas referências para sustentar que aqueles que sobrevivem não são os mais competitivos, mas antes os mais «cooperativos». Ele cita por exemplo os escaravelhos ( necróforos) que enterram os animais mortos para aí porem os seus ovos. Os pelicanos nadam de frente para armadilhar os cardumes de peixes. Os cavalos selvagens reúnem-se para se defenderem dos lobos e dos ursos. Kropotkine explica que as espécies que contam com maior número de indivíduos são aquelas que têm o instinto de cooperação mais desenvolvido. Seria estranho que o homem fosse a excepção, tanto mais que sendo, «no início, uma criatura tão frágil não deixasse de encontrar protecção no apoio mútuo , tal como os outro animais, e não numa acirrada competição sem olhar para o bem da espécie.» Os elementos apresentados por dezenas de exploradores e antropólogos confortaram Kropotkine na ideia que o«selvagem» é uma ficção. As relações dos povos primitivos eram doces, espontâneas e afectuosas. Kropotkine regozijava-se do comunismo natural destes indivíduos materialmente atrasados
como Hutentotes que « não podendo comer sozinhos, mesmo quando tivessem fome, pediam aos colegas para virem partilhar o seu alimento» ou ainda dos Aleut em cuja comunidade se algum dos seus membros se enriquecia, logo convocava o clã para uma festa a fim de distribuir a sua fortuna.

O seu livro «Apoio Mútuo» traça a historia da ajuda recíproca e insiste no estudo das cidades livres da Idade Média e as confrarias dessas cidades. Elas eram, para ela, modelos de sociedade e estruturas económicas em pequena escala. Considerava o aparecimento dos Estados-Nações no século XVI como uma aberração ao arrepio do progresso histórico. Mesmo na Europa do século XIX ele acreditava ver os fermentos de uma sociedade mais natural. O que é descrito no livro «Apoio Mútuo» é parcial, e o próprio Kropotkine admite-o, mas justifica-se com a necessidade de um antídoto à escola do pensamento individualista.

Não obstante as suas perspectivas revolucionárias, Kropotkine é o fruto da sua época como bem o demonstra a sua fé no progresso e no poder benéfico da ciência. As suas ideias eram influenciadas pelo seu temperamento, doce, moderado, ignorando os baixios da alma humana. Se Kropotkine se resumisse a estes traços podíamos ignorar o seu pensamento. Mas os seus ideais são baseados em factos, em comunidades russas, nas tribos da Sibéria, nos agricultores relojoeiros das Ilhas Anglo-Normandas e por toda uma experiência consolidada graças a uma pesquisa meticulosa e exaustiva.
O optimismo cego é uma falha, mas um optimismo a longo prazo, baseado num saber do mundo natural e das capacidades humanas é uma virtude que bem pode aproveitar à nossa época tão privada de referências.


Autor: Nicholas GouldTexto publicado na edição francesa do nº 17 da revista L’Ecologiste, correspondente aos meses de Dez/2005 e Jan/Fev de 2006