10.3.05

Trás-os-Montes: Reserva Natural do Homem?



A cidade é um sítio para se estar; a província é o sítio para se ser”
(Vergílio Ferreira, in Contra-Corrente)

Quando se fala de Trás-os-Montes é-se tentado não raras vezes a fazê-lo segundo um registo turístico. Referem-se as paisagens, as vias de acessibilidade, o isolamento geográfico, a rusticidade das aldeias, os recursos naturais, acabando invariavelmente a falar-se do potencial económico da região e da necessidade do seu aproveitamento. Na pior das hipóteses lança-se o alvitre da possibilidade de explorar um novo destino para o chamado turismo de massas.
À partida recusamos um tal tipo de abordagem, demasiadamente prenhe em lugares-comuns e boas-intenções. Privilegiamos antes uma outra aproximação, porventura não tanto imediatista e visualizante mas sobretudo de carácter reflexivo e antropológica, porque mais desafiadora e estimulante.
Trás-os-Montes constitui na verdade um desafio ao espírito e acção humana. A realidade transmontana é um manancial rico de elementos para as mais diversas ciências, puras e aplicadas. Infelizmente os discursos mistificatórios, com tonalidades várias, têm ocupado todo o campo comunicacional, deixando passar ideias atávicas e estereótipos que impedem a visão límpida e despreconceituada tal qual água cristalina de um regato montanhês. É cada vez mais premente uma aproximação outra àquela realidade que seja capaz de pôr em diálogo os estudos e as investigações sérias e a prática e a mundividência dos homens que povoam a terra.
Até mesmo a especulativa ideia de um Teixeira Pascoais ao proclamar, por exemplo, que a região do Tâmega é, por assim dizer, a consubstanciação de toda a terra portuguesa, o ponto de confluência e cruzamento de duas etnias diferentes - o ariano ( gregos, romanos, godos, celtas, etc) e o semita (fenícios, judeus, árabes) - mesmo um tal pensamento é, de longe, muito mais interessante e enriquecedor para o conhecimento do imaginário e do quotidiano das gentes transmontanas que muitos dos discursos mediatizados, produzidos a esmo, sobre o mesmo tema. Escreve ele que “ a aurora é grega, o calor do meio dia é judaico e é da Ibéria o sol poente, morte na cruz (...) O ário criou a civilização greco-romana, o culto plástico da Forma, a beleza concebida dentro da Realidade próxima e tangível, o Paganismo; o semita criou a civilização judaica, a Bíblia, o culto do Espírito, a unidade divina, a beleza concebida para além da Matéria(...) o ário cantou, nos cumes do Parnaso, a verde alegria terrestre, a infância, a superfície angélica da vida; o semita glorificou, nos cerros do Calvário, a dor salvadora que eleva as almas para o céu, o sonho da Redenção, pelo sacrifício do indivíduo ao espírito” (Teixeira Pascoais in “A Arte de Ser Português”).
Para Teixeira de Pascoais “ entender a treva é ser claridade”, o que vem a contrariar toda uma educação ofuscada pelo espectáculo, pelas luzes trepidantes da civilização urbana, que tão magistralmente foi retratada por aquela figura simples mas sublime que foi Chaplin em filmes não menos inesquecíveis como “Tempos Modernos”, “Luzes da Ribalta”,...
Torga é outra voz que se nos oferece como eco de Trás-os-Montes. De escrita mais telúrica e menos transcendental, ele recolhe o magma da terra transmontana para fazer dela muitas vezes o seu material de trabalho privilegiado. Não admira que seja alvo fácil da crítica cerrada de pós-modernistas encartadas, sempre dispostos a zurzir em tudo o que ressuma de esforço protemaico de sobrevivência, ou objecto de culto saloio de provincianos à procura de uma legitimidade rural deserdada pela urbanização acelerada, mas tanto uns como outros irmanados na comum desconfiança do Zaratrusta que resgata a sua alma na dura existência de uma vida em permanente guerra para se superar a si própria.

Ao invés do que habitualmente é difundido pelos “opinion makers” o Renascimento Rural não passa pela industrialização forçada nem muito menos pelo agenciamento de assalariados. É que a mercantilização das relações sociais destrói as redes ancestrais de economias locais, autênticas sociedades-providência, como bem faz notar o sociólogo Boaventura Sousa Santos, e a territorialização que opera , condena irrevogavelmente tais comunidades para uma periferia ( senão mesmo para a ultra-periferia) que tão cedo não conseguem sair.

Um desenvolvimento sustentável e autocentrado evitará certamente esse mesmo efeito de centrifugação e fenómenos como a desertificação do interior ou o etnocídio das culturas rurais às mãos da toda poderosa cultura de massas.

Dúvidas não temos que a região transmontana tem condições para nela se ensaiar dinâmicas de um processo de renascimento rural. Houvessem vontades e clarividência de propósitos. Desgraçadamente nem sempre é isso que acontece. Pululam bacharéis e “judeus-novos” da industria que se exibem como aprendizes de feiticeiro e subprodutos industriais invadem casas e terras, convertendo o orgulho do ser rural em humilde provincianismo.

Estudos etnográficos, antropológicos e de sociologia têm, no entanto, permitido fixar alguns traços característicos da região e do homem transmontano. Refira-se, por exemplo, os textos publicados na colecção “Portugal de Perto” das Edições D. Quixote que se têm destacado no levantamento da nossa realidade mais profunda, mas muitos outros trabalhos e investigações seriam dignos de nota. E autores como J.L Vasconcelos, Teófilo Braga, Adolfo Coelho Jorge Dias, Moisés Espírito Santo, B. Juan O’Neill, António Lourenço Fontes, Ernesto Veiga de Oliveira, Teresa Joaquim, Joaquim Pais de Brito e tantos outros têm vindo desde há décadas a realizar um trabalho de campo notável em prol do conhecimento dos usos e costumes populares, das mentalidades e relações sociais que é feito o mundo rural, escolhendo a região transmontana como realidade privilegiada na sua investigação. É assim possível tomar conhecimento do comunitarismo aldeão, dos códigos de comportamento do homem rural, das festividades cíclicas que marcam a vida quotidiana, os ritualismos vários, os tipos de alianças matrimoniais, a arquitectura tradicional, a religiosidade popular ( quantas vezes subversora dos cânones oficiais da instituição eclesial, centralizadora por natureza ), a cultura e a literatura oral, as práticas educacionais e mil e um outros aspectos que escapam ao observador comum, habituado como está aos estereótipos mediáticos propalados pelas formas mais diversas.

Graças à economia primitiva transmontana, a estrutura social era não há muito tempo de natureza marcadamente comunitária, antes dos padrões urbano-capitalistas se terem expandido e se imporem arrogantemente como marco da civilização industrial pretensamente superior a outras formas de sociabilidade humana. Não obstante, nada nem ninguém poderá desmentir esse enraizado húmus de que é feito esta terra e que encontrou em Rio de Onor o exemplo mais célebre desse modo de viver comunitário. E não é por acaso que o povoamento em Trás-os-Montes, apesar de muito menos denso que na orla litoral, se caracteriza por ser muito concentrado: uma tal aglomeração populacional exprime de alguma maneira a própria organização comunitária entre vizinhos.
As aldeias transmontanas são compactas e a rudeza ancestral das suas populações está bem espelhada nas suas casas feitas muitas vezes de pedra solta sem qualquer reboco que remate a construção de granito ou de xisto dentro da qual vivem.

Estas aglomerações populacionais são acompanhadas por uma atitude de desconfiança e hostilidade para com as comunidades vizinhas e a sociedade em geral, mas especialmente dirigida para a cidade e o Estado. Há quem analisa esta atitude segundo o modelo “Nós” e “Eles”, em que a rivalidade entre comunidades não seria senão uma forma de transferir para fora de um colectivo a discórdia que internamente o pode dividir e ameaçar. Mas esta é apenas uma proposta de análise. Nada mais do que isso.

Trás-os-Montes é, de resto, uma região onde a contestação violenta contra o poder central sempre se fez sentir. O abade de Baçal cita alguns desses barulhos ocorridos no distrito de Bragança, em finais do século passado, que mobilizavam povoações inteiras e chegavam a transformar-se em verdadeiros tumultos ( Cfr. Padre Francisco Manuel Alves, “Memórias arqueológico-históricas do distrito de Bragança”,tomo 1, pp 219-231) .

Recorde-se ainda que em 1937 os baldios representavam 19% nos distritos de Bragança e Vila Real e não foram poucos os conflitos camponeses a propósito da apropriação daqueles pelos “poderosos” (Cfr. João Fatela, “O Sangue e a Rua”, pp105-106), matéria cujo interesse para a história local poderia ser potenciada no dia em que algum professor se lembrasse de cotejar aquela realidade com as peripécias semelhantes que fazem parte do enredo de algumas telenovelas brasileiras quando retratam expropriações privadas de terras que até ali eram comuns, e fonte de conflitualidade entre os “coronéis” e os “sem-terra”.

Terra de emigrantes e de esperança são de Trás-os-Montes alguns dos aventureiros que abriram mundos ao mundo e que procuraram fugir ao destino que se lhes preparava. Recordemos Fernão de Magalhães e de Diogo Cão ( descobridor do Congo), ambos com nascimento na região.
Torga ao confessar “ Não tenho fronteiras espirituais, mas trago gravados nos cromossomas os marcos da minha freguesia e a fisionomia dos meus conterrâneos”, pretende justamente reafirmar a idiossincracia do transmontano onde quer que ele se encontre, o esqueleto ético que o constitui, e o horizonte imaginário em que se inspira.

Figura ímpar de transmontano é, sem dúvida, Guerra Junqueiro (n. 1850 -f. 1923). O seu panteísmo e humanitarismo inspirado em Proudhon, Michelet e Victor Hugo, assim como o seu amor aos simples, fazem dele, não obstante a carreira de burocrata e político, um caso de heterodoxia e idealismo de pujança assombrosa . São dele estes versos: “Dentro dessa prisão cruel do dogma antigo/ A consciência não pode estar paralisada, (...)/Tudo se modifica e tudo se renova”.

Talvez que num mundo massificado e massificador, incompatível com as características genéticas da espécie humana ( como defende a Etologia enquanto ciência que estuda a biologia do comportamento humano), seja necessário um regresso aos pequenos grupos gregários para conciliar o homem com a natureza humana. Longe das megalópolis e do modo de vida urbano aí temos o naturalismo e a ruralidade de Trás-os-Montes para salvaguardar ainda o homem simples, honrado e sensível. Um homem não cartesiano nem quantificador que vive não para subir na vida mas vive pela vida, e em que cada momento é sempre um todo e não uma parte. E nele caberá, se o quiser, a dimensão do transcendente.

A invenção da bandeira negra.

O dia 9 de Março marca o nascimento histórica da bandeira negra. Não propriamente a dos piratas, mas a que é símbolo do sofrimento e da revolta. Tudo se passou em Paris no ano de 1883.

De início, por volta de 1870, era um simples véu negro que Louise Michel utilizava quando assomava à frente de alguma manifestação operária. Recorde-se que Louise Michel enviuvara duplamente: por um lado, pelo esmagamento da Comuna de Paris, e por outro, pela morte por fuzilamento aos 25 anos do seu amado Théophile Ferre.

Em Paris no dia 9 de Março de 1883, uma multidão avança sobre as padarias e atira-se aos pães que aqueles estabelecimentos guardavam. Uma gravura da época mostra Louise Michel, vestida de preto, no meio dos desempregados revoltados, brandindo uma pequeno haste à qual estava atado o célebre véu preto e sobre o qual se tinha bordado a seguinte frase: « O Pão ou a morte».
Pelo seu acto de ataque às padarias, Louise Michel será condenada a 6 anos de prisão, mas os seus colegas encontraram uma bandeira para erguer, e daí para a frente a bandeira negra flutua nos meetings e nas manifs dos rebeldes libertários.


Cineclube da Feira


O Cineclube de Sta Maria da Feira prossegue a sua actividade cineclubística durante este mês, estando previstas as seguintes projecções

13 de Março – às 15.30 - Rasganço, de Raquel Freire, filme português de 2001

13 de Março – às 21.30 - «5x2», de François Ozon, filme francês de 2004

20 de Março – às 21.30 - «à procura da terra do nunca», de Marc Forster, filme dos EUA de 2004

27 de Março – às 21.30 -«A esquiva», de Abdellatif Kechiche,filme francês de 2003

Mais informações:
www.cineclubedafeira.net